São Paulo, sábado, 29 de outubro de 2005

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O autor português faz no Brasil o lançamento mundial do irônico romance "As Intermitências da Morte"

Saramago ri da morte

MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL

"Lamento comunicar-lhe que a sua vida terminará no prazo irrevogável e improrrogável de uma semana, desejo-lhe que aproveite o melhor que puder o tempo que lhe resta, sua atenta servidora, morte." Essa é a carta que alguns cidadãos de um país fictício passaram a receber depois que a morte entrou e saiu de uma greve inédita -e antes que tivesse a sua rotina definitivamente perturbada por um violoncelista que gosta da "Suíte nš 6 para Violoncelo" de Bach, opus 1.012, em ré maior.
Assim, em poucas palavras, é o novo romance de José Saramago, 82, "As Intermitências da Morte", que teve lançamento mundial anteontem em São Paulo, com a presença do autor.
Saramago, o único Prêmio Nobel da língua portuguesa, disse em entrevista à Folha que "já esteve na hora" de o Brasil ganhar o prêmio diversas vezes. Ele tem um nome brasileiro em mente para a principal distinção literária do mundo. Mas não revela qual.
Apontado pelo crítico literário Harold Bloom como o maior romancista vivo, Saramago nega que o romance -gênero ao qual retorna agora- esteja em crise.
O escritor fala da crise política no Brasil, dizendo que o governo Lula passou do imobilismo para a paralisia. E, principalmente, Saramago desmonta o quebra-cabeça tanatológico de sua última obra, uma história de amor cheia de humor e ironia. E diz que tipo de mulher a morte é.

 

Folha - Por que falar da morte com humor? E como uma história de amor?
José Saramago -
Creio que, em primeiro lugar, para falar da morte é preciso estar vivo. Os mortos não falam da morte, embora, em princípio, devessem saber tudo sobre ela. Mas é que nós julgamos, os vivos, que sabemos alguma coisa da morte dos outros. Não chegaremos a saber nada, nem sequer da nossa própria morte. Não creio que venhamos a saber alguma coisa da morte que tenha alguma utilidade para os vivos. Porque, mesmo que soubéssemos tudo a respeito dela, o simples fato de estarmos vivos nos impede de aprender algo que tenha que ver com a morte. Seria necessário uma demonstração racional sobre o que nos acontece. Não o que nos acontece na morte, o que nos acontece depois da morte.
Tenho isso, enfim, bastante claro. Desapareceu a matéria e com ela desapareceu tudo aquilo que, durante um tempo e consensualmente, achamos que não é matéria -que chamamos de espírito, alma ou coisa que o valha.
Às vezes pessoas vivem como uma espécie de enamoramento da morte. Levam a vida toda como que namorando a morte. Eu não pertenço a esse grupo. Não namoro a morte. Escrevi sobre ela. Terei escrito sobre a morte realmente? No fundo, acho que não. Porque, em primeiro lugar -e isso parece bastante óbvio-, escrever sobre a morte, no fundo, é escrever sobre a vida. Porque é desde o ponto de vista da vida que estamos a escrever sobre a morte.
Por outro lado, no caso concreto deste romance, além dessa ironia, desse humor que resulta até da própria situação, eu poderia cair num tenebrismo aflitivo que poderia chegar a tirar o sono dos leitores, ao estilo de Edgar Allan Poe. Parece, nos livros que ele escreveu, que tinha fascinação pela morte. Como quem diz: a morte tem de vir, então que venha já. Para ele, é algo nesse espírito. No meu caso, não. É um jogo. Imaginar que a morte efetivamente está aí, como representação.
Se nós nunca tivéssemos imaginado representações da morte, vivíamos simplesmente com a idéia de que temos de morrer e não "fulanizaríamos" isso num esqueleto ou numa coisa com um lençol branco, posto por cima, essas imagens tópicas. Mas eu creio que, no fundo, isso tem que ver com as circunstâncias em que o livro nasce. O livro não nasceu porque eu tivesse decidido "vou escrever agora sobre a morte".


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