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LITERATURA
Para Saramago, país enfrenta "corrupção vertical e horizontal'; autor defende nome brasileiro para o Nobel
"Fogo de palha, governo Lula sofre paralisia"
Marlene Bergamo/Folha Imagem
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O português José Saramago, que está no Brasil para lançar o livro "As Intermitências da Morte" |
DA REPORTAGEM LOCAL
Leia a seguir a continuação da
entrevista com o escritor português José Saramago.
(MARCOS STRECKER)
Folha - Como surgiu a idéia de um
livro sobre a morte?
José Saramago - Eu estava a reler
"Os Cadernos de Malte Laurids
Brigge", de Rainer Maria Rilke.
Ele fala muito da morte, são páginas realmente extraordinárias. De
repente, juntou-se isso. Uma situação em que a morte não matasse. O que aconteceria se...? Essa
pergunta, aliás, está presente em
todos os meus romances. Sempre,
em qualquer romance meu, essa
questão se põe. E, nesse caso, foi
simplesmente: e se a morte deixasse de matar?
Folha - A sua morte é bem diferente, por exemplo, da morte de
Proust, ou da morte retratada por
Bergman em "O Sétimo Selo"...
Saramago - Ela é diferente, claro.
É diferente da visão que se tinha
da morte na Idade Média, em que
vivia-se dentro dos cemitérios. Na
França, as pessoas viviam dentro
dos cemitérios. Isso parece completamente absurdo, mas aconteceu. O contrário disso é a preocupação que temos hoje de fazer de
conta que a morte não existe.
Obliterá-la, tirá-la da paisagem.
Isso é o que nós fazemos. Os funerais já não atravessam as cidades.
As carruagens fúnebres, puxadas
a cavalo, esses cavalos já não puxam essas carruagens. Há para
mim essa preocupação com a
morte ao longo do tempo. A minha contribuição para essa matéria consiste em olhar para ela com
certa ironia. Estou a tentar rir-me
de mim mesmo aí, como ser mortal que sou e consciente de que estou a brincar com a pobre, porque, evidentemente, um dia destes ela pega-me.
Folha - O senhor tinha alguém em
mente quando imaginou a figura
da morte?
Saramago - Não, não tinha. Quer
dizer... Teria feito da morte mulher, porque a morte não é masculina. Agradou-me muito a idéia de
que, pelo menos no nosso país e
nesses do lado de cá, digamos latinos, creio, a morte é "uma" morte. A morte para mim é feminina.
Folha - Recentemente Lygia Fagundes Telles e outros escritores
reclamaram da falta de distinção
de um brasileiro com o Prêmio Nobel. O sr. tem algum "candidato"?
Saramago - São os critérios da
Academia Sueca. Eu não creio
que valha muito a pena nos indignarmos e protestarmos. Sim, "está na hora de", claro que sim. "Esteve na hora de" com João Cabral
de Melo Neto. "Esteve na hora de"
com Jorge Amado, "esteve na hora" no caso de Carlos Drummond
de Andrade, "esteve na hora de"
com Manuel Bandeira, "esteve na
hora de" com Guimarães Rosa...
Agora, eu penso que sim, que está.
Se me perguntam se eu vejo algum escritor... Vejo, mas não vou
dizer... Oxalá que o ano que vem o
Prêmio Nobel seja para um escritor brasileiro. Com certeza faríamos um dueto. O dueto da língua
portuguesa.
Folha - O senhor acompanhou as
notícias do referendo que ocorreu
nos últimos dias no Brasil?
Saramago - Acompanhei. Não
me chocou. Vivemos num estado
de insegurança geral. É natural
que as pessoas pensem que, se tivessem uma arma para defender-se, isso lhes conferiria maior segurança. Mas creio que é uma falsa
segurança. Por outro lado, [o referendo] foi um disparate. Neste
momento, o Brasil numa crise política séria, gravíssima. Como se
aqui todas as coisas corressem o
melhor possível... O referendo
não muda nada na situação em
que as coisas se encontravam.
Agora, se o Brasil quis imitar os
EUA e fazer da posse de arma
uma espécie de novo estatuto de
cidadania, parece um bocado infeliz, não é?
Folha - No Fórum Social Mundial
em Porto Alegre, em janeiro, o senhor já fazia críticas à esquerda e
ao governo Lula. O que o senhor
acha da crise atual?
Saramago - A eleição do Lula foi
uma luz que atravessou o mundo.
Mas depois de todo esse fogo de
palha, aquilo que assistimos depois justificou que eu tivesse feito
alguma crítica em Porto Alegre.
Folha - O senhor teve algum contato com alguém do governo depois dessas críticas?
Saramago - Não, não. Quer dizer, eu encontrei muito recentemente, há poucos dias, em Salamanca, o presidente Lula. Conversamos um pouco, dissemos
um ao outro o que gostaríamos de
conversar um dia destes, mas não
vejo como seja possível. Assistimos a uma espécie de imobilismo
na ação governativa. E agora, depois do que aconteceu com o PT e
quanto a esse "mensalão" e todas
essas coisas, já não é imobilismo,
já é paralisia.
Folha - Paralisia?
Saramago - É a sensação que dá,
porque é evidente que o campo da
ação do presidente está limitado.
Depois do que aconteceu nesse
processo absolutamente lamentável de uma corrupção vertical e
horizontal... Não sei como é que o
Brasil vai sair disso. É lamentável.
E agora a minha pergunta é essa:
servirá isto de lição? Estávamos
tão contentes... O balde de água
fria, a frustração, a decepção é
muito difícil de engolir.
Folha - Voltando à sua obra. O senhor transita em vários gêneros. O
crítico literário Harold Bloom diz
que o senhor é atualmente o grande nome do romance, de um gênero que está em extinção.
Saramago - Eu não creio que o
gênero romance esteja em extinção. O romance extingue-se e renova-se todos os dias. Já não podemos repetir o romance tal como se entendia ele no século 19.
Eu às vezes digo que o romance
deixou de ser um gênero para
passar a converter-se num espaço
literário, exatamente para tirar-lhe essa classificação rígida. No
romance hoje cabe tudo. Quanto
à outra opinião de Harold Bloom
a meu respeito, lisonjeia-me muito, mas não sei se é verdade.
Folha - O sr. descreve a morte como uma mulher de certa forma
charmosa e sedutora. Como ela é fisicamente?
Saramago - Bem, como diriam
os franceses, é uma "fausse-maigre" [falsa magra]...
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