São Paulo, sábado, 29 de outubro de 2005

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LITERATURA

Para Saramago, país enfrenta "corrupção vertical e horizontal'; autor defende nome brasileiro para o Nobel

"Fogo de palha, governo Lula sofre paralisia"

Marlene Bergamo/Folha Imagem
O português José Saramago, que está no Brasil para lançar o livro "As Intermitências da Morte"


DA REPORTAGEM LOCAL

Leia a seguir a continuação da entrevista com o escritor português José Saramago. (MARCOS STRECKER)
 

Folha - Como surgiu a idéia de um livro sobre a morte?
José Saramago -
Eu estava a reler "Os Cadernos de Malte Laurids Brigge", de Rainer Maria Rilke. Ele fala muito da morte, são páginas realmente extraordinárias. De repente, juntou-se isso. Uma situação em que a morte não matasse. O que aconteceria se...? Essa pergunta, aliás, está presente em todos os meus romances. Sempre, em qualquer romance meu, essa questão se põe. E, nesse caso, foi simplesmente: e se a morte deixasse de matar?

Folha - A sua morte é bem diferente, por exemplo, da morte de Proust, ou da morte retratada por Bergman em "O Sétimo Selo"...
Saramago -
Ela é diferente, claro. É diferente da visão que se tinha da morte na Idade Média, em que vivia-se dentro dos cemitérios. Na França, as pessoas viviam dentro dos cemitérios. Isso parece completamente absurdo, mas aconteceu. O contrário disso é a preocupação que temos hoje de fazer de conta que a morte não existe. Obliterá-la, tirá-la da paisagem. Isso é o que nós fazemos. Os funerais já não atravessam as cidades. As carruagens fúnebres, puxadas a cavalo, esses cavalos já não puxam essas carruagens. Há para mim essa preocupação com a morte ao longo do tempo. A minha contribuição para essa matéria consiste em olhar para ela com certa ironia. Estou a tentar rir-me de mim mesmo aí, como ser mortal que sou e consciente de que estou a brincar com a pobre, porque, evidentemente, um dia destes ela pega-me.

Folha - O senhor tinha alguém em mente quando imaginou a figura da morte?
Saramago -
Não, não tinha. Quer dizer... Teria feito da morte mulher, porque a morte não é masculina. Agradou-me muito a idéia de que, pelo menos no nosso país e nesses do lado de cá, digamos latinos, creio, a morte é "uma" morte. A morte para mim é feminina.

Folha - Recentemente Lygia Fagundes Telles e outros escritores reclamaram da falta de distinção de um brasileiro com o Prêmio Nobel. O sr. tem algum "candidato"?
Saramago -
São os critérios da Academia Sueca. Eu não creio que valha muito a pena nos indignarmos e protestarmos. Sim, "está na hora de", claro que sim. "Esteve na hora de" com João Cabral de Melo Neto. "Esteve na hora de" com Jorge Amado, "esteve na hora" no caso de Carlos Drummond de Andrade, "esteve na hora de" com Manuel Bandeira, "esteve na hora de" com Guimarães Rosa... Agora, eu penso que sim, que está. Se me perguntam se eu vejo algum escritor... Vejo, mas não vou dizer... Oxalá que o ano que vem o Prêmio Nobel seja para um escritor brasileiro. Com certeza faríamos um dueto. O dueto da língua portuguesa.

Folha - O senhor acompanhou as notícias do referendo que ocorreu nos últimos dias no Brasil?
Saramago -
Acompanhei. Não me chocou. Vivemos num estado de insegurança geral. É natural que as pessoas pensem que, se tivessem uma arma para defender-se, isso lhes conferiria maior segurança. Mas creio que é uma falsa segurança. Por outro lado, [o referendo] foi um disparate. Neste momento, o Brasil numa crise política séria, gravíssima. Como se aqui todas as coisas corressem o melhor possível... O referendo não muda nada na situação em que as coisas se encontravam. Agora, se o Brasil quis imitar os EUA e fazer da posse de arma uma espécie de novo estatuto de cidadania, parece um bocado infeliz, não é?

Folha - No Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em janeiro, o senhor já fazia críticas à esquerda e ao governo Lula. O que o senhor acha da crise atual?
Saramago -
A eleição do Lula foi uma luz que atravessou o mundo. Mas depois de todo esse fogo de palha, aquilo que assistimos depois justificou que eu tivesse feito alguma crítica em Porto Alegre.

Folha - O senhor teve algum contato com alguém do governo depois dessas críticas?
Saramago -
Não, não. Quer dizer, eu encontrei muito recentemente, há poucos dias, em Salamanca, o presidente Lula. Conversamos um pouco, dissemos um ao outro o que gostaríamos de conversar um dia destes, mas não vejo como seja possível. Assistimos a uma espécie de imobilismo na ação governativa. E agora, depois do que aconteceu com o PT e quanto a esse "mensalão" e todas essas coisas, já não é imobilismo, já é paralisia.

Folha - Paralisia?
Saramago -
É a sensação que dá, porque é evidente que o campo da ação do presidente está limitado. Depois do que aconteceu nesse processo absolutamente lamentável de uma corrupção vertical e horizontal... Não sei como é que o Brasil vai sair disso. É lamentável. E agora a minha pergunta é essa: servirá isto de lição? Estávamos tão contentes... O balde de água fria, a frustração, a decepção é muito difícil de engolir.

Folha - Voltando à sua obra. O senhor transita em vários gêneros. O crítico literário Harold Bloom diz que o senhor é atualmente o grande nome do romance, de um gênero que está em extinção.
Saramago -
Eu não creio que o gênero romance esteja em extinção. O romance extingue-se e renova-se todos os dias. Já não podemos repetir o romance tal como se entendia ele no século 19. Eu às vezes digo que o romance deixou de ser um gênero para passar a converter-se num espaço literário, exatamente para tirar-lhe essa classificação rígida. No romance hoje cabe tudo. Quanto à outra opinião de Harold Bloom a meu respeito, lisonjeia-me muito, mas não sei se é verdade.

Folha - O sr. descreve a morte como uma mulher de certa forma charmosa e sedutora. Como ela é fisicamente?
Saramago -
Bem, como diriam os franceses, é uma "fausse-maigre" [falsa magra]...


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