São Paulo, sábado, 29 de outubro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

29ª MOSTRA DE CINEMA

"2046" retoma personagens de longas anteriores do diretor de "Amores Expressos" e transmite sensação de déjà vu

Kar-wai explora rejeição de um amante

BRUNO YUTAKA SAITO
DA REPORTAGEM LOCAL

O déjà vu incomoda porque embaralha realidade e imaginação. Já passamos por aquilo ou tudo não passa de truque da mente? Ainda que não seja a questão principal de "2046", a sensação norteia este novo filme de Wong Kar-wai.
Claro, não poderia ser diferente, já que se trata da continuação de "Amor à Flor da Pele", ao acompanhar o sr. Chow (Tony Leung) após sua decepção amorosa com a vizinha. Um certo mal-estar emana deste triste "2046", porque encontraremos um personagem mudado. É o mesmo cenário saudosista da Hong Kong dos anos 60, mas aqui não há amor. O negócio é sexo sem delongas.
Se a imagem fixada era a do homem honrado, tímido e rejeitado, agora Chow ostenta um espírito safado e quer mais é fazer transitar o maior número de mulheres em sua cama. "2046" mostra quatro envolvimentos fugazes desse jornalista free-lancer que escreve um romance, também "2046". Na história dentro da história, o número é uma data/lugar/estado de espírito em que as pessoas vão para recapturar memórias perdidas. Lá, nada muda. 2046 é ainda o último ano do período estipulado pela China a Hong Kong em que tudo na ex-colônia deve permanecer inalterado. É, por fim, o número do quarto de hotel de "Amor à Flor da Pele" onde Chow encontrava sua vizinha.
Kar-wai lida, portanto, com a questão do tempo e da memória. Não vem ao caso comparações com Alain Resnais. Mais do que cinema de autor, o diretor oriental cria filmes para culto. Permite-se, em "2046", o uso de maneirismos, ainda mais gratuitos -planos fragmentados em velocidades diferentes, música nostálgica etc.
O déjà vu surge ainda porque Kar-wai lida basicamente com os mesmos temas e personagens em sua obra. Uma das mulheres por quem Chow se interessa é a filha do dono do hotel, interpretada pela mesma Faye Wong que, em "Amores Expressos", atiçava a curiosidade do policial feito por Leung. É como se buscasse explicitar a idéia de que temos diferentes encarnações ao longo da vida.
O interesse se mantém pela poesia pueril com que entrelaça seu balé de desencontros amorosos. Na trama dentro da trama, temos andróides com emoções atrasadas. Se algum deles deseja chorar, a lágrima só cairá no dia seguinte.
"2046" é história sobre fantasmas, a começar por Chow, que não se livra do fantasma da mulher perfeita. Assim, Kar-wai transmite a sensação surreal que é a rejeição de um amante. Esperamos pelas gentilezas e sorrisos do passado, mas apenas encontramos um ser transformado. O corpo é o mesmo, mas algo ali, na essência, se perdeu. "2046" é como o ex-amante que retorna, não melhor ou pior, apenas sem o frescor da novidade e o poder da ilusão.


2046
   
Direção: Wong Kar-wai
Quando: hoje, às 20h30, na Sala UOL; e dias 1º, às 21h40, no Cine MorumbiShopping; e 2, às 14h, no Espaço Unibanco


Texto Anterior: Crítica: "Sábado" tem impacto imediato ao incorporar o noticiário atual
Próximo Texto: "Uma Mulher contra Hitler": Longa sobre nazismo omite povo alemão
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.