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DRAUZIO VARELLA
A gripe dos frangos
Minha avó contava que, na
gripe espanhola de 1918,
morria tanta gente em São Paulo,
que os corpos eram colocados nas
portas das casas ao clarear o dia,
para serem recolhidos pelas carroças-funerárias.
A cepa do vírus da gripe espanhola foi especialmente virulenta.
Se é que podemos confiar nas estatísticas daquele tempo, houve de
40 milhões a 50 milhões de mortes.
Entre elas, a de uma mulher do
Alasca desenterrada recentemente do gelo, na qual foi possível recuperar o vírus, decifrar-lhe a seqüência genética completa e compará-la com as dos vírus responsáveis pelas epidemias da gripe asiática (1957) e da gripe de Hong
Kong (1968), causadoras de cerca
de 1 milhão de óbitos cada uma.
O estudo revelou que, nas gripes
asiática e de Hong Kong, o vírus se
tornou mais agressivo após sofrer
mutações nas quais incorporou de
dois a três genes "extras", adquiridos de cepas que infectam aves; o
fenômeno pode ter ocorrido quando uma cepa de vírus da gripe humana infectou aves gripadas ou
vice-versa.
Ao contrário, o vírus da gripe espanhola era de origem inteiramente aviária. No organismo das
aves é que sofreu, por conta própria, as mutações necessárias para
iludir o sistema imunológico humano e provocar a epidemia
mundial (pandemia).
A partir dos anos 1990, pelo menos três subtipos de vírus da gripe
aviária (H5, H7 e H9) emergiram
como agentes responsáveis por
grande número de mortes nas
criações de frangos. Uma das cepas, H5N1, que apareceu na Coréia do Sul em 2003, foi particularmente devastadora para os criadores, obrigando-os a sacrificar
pelo menos 150 milhões de aves no
sudeste asiático. Apesar do esforço, no entanto, a doença é hoje endêmica no Vietnã, Camboja, Tailândia, Indonésia, China e Laos.
Hoje está claro que a cepa H5N1
não infecta apenas frangos confinados aos milhares nos criadouros: leopardos, tigres, porcos, patos, aves migratórias e homens podem contraí-la. Dados oficiais estimam que, até agora, pelo menos
117 seres humanos teriam adquirido o H5N1 através do contato direto com aves, sugerindo que o vírus ainda não tenha adquirido as
características necessárias para o
contágio inter-humano.
O que assusta, no entanto, não é
o número de pessoas infectadas,
mas a taxa de letalidade: mais de
50% dos doentes morreram. O espectro da gripe espanhola voltou a
pairar sobre o mundo. Como lidar
com ele?
A medida de maior eficácia é
conter o surto entre as aves domésticas. Enquanto o vírus for endêmico em certos países, haverá
risco de surgir mutações que facilitem o contágio entre seres humanos. Uma epidemia do mesmo
H5N1, iniciada em 1997 em Hong
Kong, foi abortada com o sacrifício de 1,5 milhão de frangos.
Se a epidemia atingir a espécie
humana, a melhor forma de enfrentá-la será desenvolver uma
vacina específica contra o H5N1.
Os técnicos estimam que, a partir
do momento em que surgirem os
primeiros casos, serão necessários
quatro a seis meses para a produção em escala industrial -tempo
exagerado para uma epidemia de
gripe; mesmo assim, em quantidades insuficientes para vacinar o
mundo todo.
Outra alternativa seria usar
drogas antivirais que previnam a
infecção ou reduzam a duração
dos sintomas e a gravidade da
doença. Existem dois medicamentos com essa propriedade (ozeltavir e zanavir), mas nenhum deles
foi testado contra o H5N1, seus
custos são altos e há dificuldades
de produção. Os técnicos calculam
que a Roche, detentora da patente
do ozeltavir, talvez precisasse de
uma década de trabalho a todo
vapor para produzir a quantidade
necessária para medicar apenas
20% da população mundial.
Nos últimos dias, os preparativos dos governos de diversos países para enfrentar a chegada da
epidemia pandemia tem ocupado
espaço nos noticiários. Para alguns epidemiologistas, a probabilidade de surgir uma nova epidemia é de 100%; mera questão de
tempo, segundo insistem.
É evidente que ninguém pode
ser contra providências adotadas
para proteger a população de uma
eventual epidemia. Todas as medidas preventivas devem ser tomadas com urgência, porque, se
ela vier, será impossível contê-la;
acometerá milhões de pessoas em
poucas semanas.
Mas assegurar que teremos uma
reedição da gripe espanhola é outra história:
1) Ainda não foi documentada a
transmissão inter-humana do
H5N1. Enquanto milhões de aves
caíram doentes, pouco mais de
uma centena de homens foi infectada. Dado o número de pessoas
que lidam com criação e abate de
frangos nos países-alvo da epidemia aviária, podemos concluir
que a capacidade de transmissão
do vírus das aves para o homem é
limitada.
2) Mais de 50% dos que adquiriram o vírus faleceram. Taxas altas de letalidade dificultam a disseminação de epidemias porque
pessoas mortas não viajam.
3) Vale a pena lembrar que embora tenha feito milhões de vítimas, a taxa de mortalidade da
gripe espanhola foi de 2,5%, e que
a maioria dos óbitos ocorreu por
complicações bacterianas facilmente curáveis pelos antibióticos
atuais.
Se tiver a pretensão de criar
uma pandemia, o H5N1 será
obrigado a abrir mão de tanta
agressividade e a adquirir uma
capacidade nova: transmitir-se
de uma pessoa para outra sem intermediários. Não há como prever quando, onde, como, nem
mesmo se um dia isso chegará a
acontecer, a menos que enxerguemos a mão divina a orientar as
mutações do vírus com a intenção
de castigar os homens de pouca fé.
A evolução das espécies através
da seleção natural, conforme nos
ensinaram Wallace e Darwin, é,
antes de tudo, um processo aleatório e imprevisível. Afirmar que
a epidemia com certeza virá tem
o mesmo rigor científico do que
fazer a afirmação oposta.
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