São Paulo, sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Novelão de arte

A vida é folhetim sem final feliz , diz Raúl Ruiz, sobre o filme "Mistérios de Lisboa" , na Mostra

Sandro Pace - 20.out.07/Associated Press
As atrizes Sofia Aparício, Helena Coelho, Catarina Wallenstein e Margarida Vilanova em cena do longa

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DA PUBLIFOLHA

Uma das atrações centrais desta Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, "Mistérios de Lisboa" é também um dos filmes mais belos e acessíveis do chileno Raúl Ruiz, que vive há décadas na França.
Baseado no folhetim homônimo de Camilo Castelo Branco (1825-1890), foi produzido para a TV. A versão de quatro horas e meia para a tela é uma preciosidade do cinema atual. A partir da misteriosa história de um órfão, desenrola uma série de desventuras amorosas.
O experimentalismo de Ruiz está presente em "Mistérios de Lisboa", mas combinado a uma linguagem aparentemente clássica e a uma fruição emocionante, que arrebata o espectador. Exceto que falta o "happy end" tão obrigatório na TV. "A vida é incoerente e é um caos, ou seja, é um folhetim, mas sem "happy end'", diz o diretor à Folha a seguir.

 

O sr. afirmou que o princípio da vontade individual, que faz mover o personagem do cinema americano, não se aplica a seus filmes. O que move seus personagens?
Raul Ruiz
- Sempre fui reticente a respeito da ideia de que a história se move porque alguém quer algo. Jamais vi exemplos em que a vontade se impusesse como algo prioritário, salvo no caso de Napoleão e, eventualmente, de Sarkozy (risos). Ontem li um pequeno tratado de Valéry em que ele diz que certa suspensão da vontade nos permite viajar com curiosidade no nosso próprio passado. E, a cada vez que nos lançamos no passado, experimentamos um passado diferente. Ele muda. O cinema tem também essa ambiguidade. Há realizadores que preferem fazer filmes dirigindo a vontade do espectador e levando todos a verem a mesma coisa. E há realizadores que preferem que o espectador construa o seu próprio filme, em paralelo com o que está vendo. Há sempre algo de manipulação no cinema, mas gosto dessa possibilidade de deixar cada espectador livre.

"Mistérios de Lisboa" se ocupa também de algo que o sr. raramente abordou: o amor-paixão. Por que se interessou por isso, agora?
Toda vez que um produtor me pede para filmar uma paixão, digo a mesma coisa: eu sou um homem casado. Essas histórias não são o meu forte. Mas, em "Mistérios", me interessaram, porque trata-se de um processo no qual a paixão leva à traição: trai-se o amigo, a amada etc.

Foi isso que lhe chamou a atenção no livro de Camilo?
A atitude de Camilo é a seguinte: "Não creia demais no que estou narrando". É como se dissesse: a vida não tem a coerência de um filme americano. A vida é incoerente e é um caos, ou seja, é um folhetim, mas sem "happy end".

A história dos mineiros chilenos daria um bom filme?
Talvez dê, mas não um filme meu, porque é um episódio muito heroico. Segui-o apaixonadamente e ele tem aspectos interessantes. Mas só há gente boa nessa história. Não há vilões. Todo mundo quer salvá-los, eles se salvam e... "happy end".

O sr. assiste às séries americanas, que têm feito tanto sucesso?
Gostei de "Lost". É um pouco mais rica que as demais. O que me interessou foi o fato de os personagens estarem sempre perdidos.

E já teve oportunidade de ver as novelas brasileiras? Sim, elas são muito simpáticas. Vê-se que são de um país "enfático", frontal, com um discurso aberto -o que me choca um pouco. Mas assisti a trechos de "Maysa", que tinha planos bonitos.

Por que o Brasil é "enfático"?
Porque há um excesso de realidade em seu país: muita luz, muitos estímulos, muito de tudo. Quando estive aí, me senti esgotado.

MISTÉRIOS DE LISBOA

DIREÇÃO Raúl Ruiz
QUANDO domingo, às 14h, no Espaço Unibanco Pompeia
CLASSIFICAÇÃO 12 anos


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Raúl Ruiz em três filmes
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.