São Paulo, Segunda-feira, 29 de Novembro de 1999


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BRASÍLIA
"São Jerônimo" e "Gêmeas" são destaques
Festival revela caminhos opostos

INÁCIO ARAUJO
enviado especial a Brasília

Uma homenagem a Glauber Rocha, iniciada no sábado, marcou o fim-de-semana em Brasília. Homenagem ambígua, que prevê a exibição da chamada "Trilogia da Terra" ("Deus e o Diabo", "Terra em Transe", "A Idade da Terra") num horário nada nobre: 10h.
Mas o que representa Glauber, efetivamente? O que mais parece contar é a lembrança de um tempo glorioso, a evocação retórica de um gênio maior do cinema. Quanto à sua herança estar viva é outra história.
A noite de sexta-feira foi bem sintomática das dúvidas que possam existir quanto a isso. "Gêmeas", de Andrucha Waddington, é um exemplo de como certo cinema mais recente -o da produtora Conspiração, no caso- segue caminhos opostos ao dessa tradição.
"Gêmeas" inspira-se em Nelson Rodrigues (emascula é a palavra certa), na história de duas irmãs idênticas que trocam de identidade todo o tempo, até que ambas se apaixonam pelo mesmo homem.
Existe ali influência do cinema americano, do videoclipe, do filme publicitário. De tudo, enfim, menos do cinema novo ou de Glauber.
No extremo oposto está "São Jerônimo", de Júlio Bressane, o segundo filme da sexta. Para narrar a vida do santo, Bressane usa como locações o sertão (transfigurado em deserto) e o parque Lage (que vira Roma), duas locações centrais no cinema de Glauber Rocha: o sertão de "Deus e o Diabo", o parque Lage de "Terra em Transe".
Enquanto Bressane -não raro- trabalha com a câmera na mão, Waddington vai na direção contrária: travellings, gruas e a luz "recherchée" parecem afirmar o domínio da técnica e sua necessidade.
A trajetória de são Jerônimo diz respeito ao absoluto da fé, à purificação pela solidão, à necessidade de ordenar o cristianismo a partir de um texto aceito universalmente: a "Vulgata" da "Bíblia".
De certa forma, o filme pode ser entendido como resposta à Babel do cinema brasileiro contemporâneo, que em sua ânsia de ser aceito pelo público atira para todos os lados, enreda-se em esteticismos, faz concessões várias e, no fim, atinge um público diminuto.
É o melhor Bressane desde "Os Sermões" e, de longe, o filme mais significativo de um festival até aqui bastante morno. Como sempre, Bressane reivindica a solidão. Mais do que nunca, parece postular a fé (na imagem) e a ordenação do cinema nacional em torno de sua tradição.
Com esses dois filmes antinômicos, o fim-de-semana deu peso ao 32º Festival de Brasília. Ou bem se começa a levar a sério esse tipo de questão ou bem isso vira um convescote em que acumulam-se gentilezas que só servem para evitar cesuras dolorosas. Exemplo: antes da projeção de seu filme, Waddington saudava Bressane como "mestre de todos nós". O que veio a seguir deixava claro que Bressane, como Glauber, pode ser tudo, menos mestre do diretor de "Gêmeas".


Texto Anterior: Cinema: Michael Apted vive entre fato e ficção
Próximo Texto: Teatro: Adaptação de Almodóvar ganha leitura
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.