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DRAUZIO VARELLA
A terceira onda
Eram invariavelmente homossexuais os primeiros brasileiros com Aids. A maioria havia adquirido o vírus em viagens
aos Estados Unidos e à Europa ou
através de relações sexuais com
parceiros infectados no exterior.
Na época, a doença era chamada
de "peste gay" e considerada por
muitos um castigo que Deus, em
sua infinita bondade, havia criado para punir a promiscuidade
humana.
Por volta de 1985, começaram a
cair doentes os portadores de hemofilia e os usuários de cocaína
injetável (homens, em sua maioria). Não seria de estranhar, os
norte-americanos e europeus já
haviam descrito a transmissão do
HIV através de produtos derivados do sangue e de agulhas contaminadas. O que surpreendeu foi
descobrirmos a existência de uma
verdadeira epidemia de cocaína
injetável na periferia das grandes
cidades. Ingenuamente, na época,
a cocaína era considerada droga
exclusiva das classes mais abastadas.
Essa foi a primeira onda da epidemia de Aids: homens homossexuais, hemofílicos e usuários de
droga injetável. Para cada 20 ou
30 homens com a doença, surgia
uma mulher.
Durante a segunda metade dos
anos 1980 e na década seguinte, o
HIV se disseminou especialmente
entre as mulheres. Não que os homens deixassem de se infectar,
mas a velocidade de disseminação entre eles diminuiu, graças a
dois fatores:
1) Impressionados pelo sofrimento dos doentes e pelo número
de mortos nas comunidades em
que viviam, os homossexuais reduziram o número de parceiros e
aderiram às práticas de sexo seguro (precauções que infelizmente muitos jovens atuais abandonaram).
2) O número de usuários de cocaína injetável caiu vertiginosamente, deixando claro que o uso
de drogas ilícitas também obedece aos ditames da moda. No ambiente marginal de cidades como
São Paulo, a cocaína injetável foi
substituída pelo crack. Para dar
uma idéia, em 1989, no auge da
epidemia de cocaína injetável,
num estudo epidemiológico por
nós conduzido na Casa de Detenção (Carandiru), encontramos
17,3% dos presos infectados pelo
HIV. A repetição desse estudo em
1995, em plena era do crack, mostrou que a prevalência havia caído para 13,7%. E para 8,5%, em
1998, quando ninguém mais injetava droga na veia.
Entre as mulheres, ao contrário,
a epidemia se disseminou com
mais liberdade nesse período. Primeiro, porque a conformação
anatômica da vagina oferece
uma superfície de contato às secreções sexuais masculinas mais
extensa do que a mucosa do pênis
às secreções femininas. Depois,
porque boa parte das mulheres
brasileiras ainda vive em condições de submissão econômica e
social aos homens.
Assim, da metade dos anos 1980
ao final da década seguinte, a relação homem/mulher com Aids
caiu gradativamente até atingir a
proporção atual de 1,8 homem
para cada mulher.
A Aids feminina e os bebês infectados constituíram a segunda
onda da epidemia.
A previsão dos rumos que a epidemia iria tomar daí em diante
gerou debates acalorados. De um
lado, os que anteviam uma terceira onda na qual o "pool" de mulheres infectadas transmitiria o
vírus para seus parceiros heterossexuais; de outro, os que consideravam a transmissão sexual da
mulher infectada para o homem
saudável altamente improvável,
por conta das diferenças anatômicas já citadas.
Em publicações científicas, entrevistas e reportagens sempre defendi a posição dos primeiros.
Nunca tive dúvida de que uma
subpopulação de homens heterossexuais estava sendo infectada silenciosamente por suas parceiras.
A certeza era baseada em reflexões teóricas e em observações clínicas.
A teoria nos ensina que não há
exemplo de doença sexualmente
transmissível que poupe um dos
sexos. Seria a Aids a única? Por
quê? Os milhões de africanos portadores do HIV seriam todos homossexuais ou dependentes de
droga injetável?
A observação prática que me
permitiu confirmar a teoria ocorreu no atendimento médico a
presidiários. Há anos encontro
presos HIV-positivos que negam o
uso de drogas injetáveis ou relações homossexuais. São mentirosos, poderíamos argumentar. É
pouco provável, eu diria. Os estupros são raros no sistema penitenciário depois que o programa de
visitas íntimas foi criado em meados dos anos 1980. Na cadeia, um
homossexual jamais passa despercebido, impossível disfarçar,
todos ficam sabendo. E os que
mantêm relações com travestis
presos não têm o menor pudor em
confessá-las, travestis são considerados "mulheres de cadeia",
não é desdouro para malandro
nenhum relacionar-se com eles.
Quanto ao uso de droga injetável no passado, por que razão esconder do médico, se os que o negam confessam a condição de
usuários de crack, maconha, ecstasy, cola e exibem as veias dos
braços intactas?
O relatório do Ministério da
Saúde que acaba de ser publicado
traz a confirmação dessas evidências. Textualmente, diz: "Entre os
homens, consolida-se o crescimento da categoria heterossexual
como principal forma de transmissão do vírus... A incidência de
Aids entre heterossexuais masculinos supera 65% das notificações".
Chegou a vez dos homens heterossexuais que jamais injetaram
droga na veia nem consideravam
necessário usar preservativo por
se julgarem imunes à infecção. A
terceira onda da Aids está nas
ruas.
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