|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PERSONALIDADE
Obra do poeta pernambucano morto anteontem transita pelas sínteses entre vanguarda e contracultura
Pelas brechas, Uchôa Leite encontrou 3ª via
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
Definir gerações poéticas é
quase sempre um exercício
arbitrário que, na medida em que
tenha alguma utilidade, funciona
melhor no atacado que no varejo.
Ainda assim, situar cronologicamente o poeta, ensaísta e tradutor
pernambucano Sebastião Uchôa
Leite -que morreu anteontem,
no Rio, aos 68 anos, devido a uma
insuficiência cardíaca- no quadro da literatura brasileira contemporânea pode ajudar sua
compreensão. Isso acontece, pois
ele foi marcado menos pelos
eventos históricos de seu tempo
do que pela situação em que sua
arte se encontrava quando recomeçou a praticá-la.
Nascido em 1935, seria tentador
justapô-lo à terceira onda modernista, formada por Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos,
Mario Faustino e Ferreira Gullar,
como um de seus representantes
mais jovens. Mas seu volume de
estréia, "Dez Sonetos sem Matéria" (60), foi uma espécie de falso
começo ao qual ele não deu continuidade imediata. Por quase duas
décadas, Sebastião se retraiu, dedicando-se a outras atividades literárias e culturais para, somente
cerca de duas décadas mais tarde,
retomar uma carreira poética que
não interromperia mais.
Assim, quando voltou de fato à
ativa com volumes como "Antilogia " (1980) e "Isso Não É Aquilo "
(1982), ele se lançou como membro de uma geração mais recente,
cujas preocupações, contexto e
estilo eram também necessariamente distintos. Ao mesmo tempo, seus contemporâneos haviam
se metamorfoseado em predecessores e foi como descendente e
leitor destes que ele criou seu próprio lugar.
Se nossa terceira onda modernista teve de trabalhar à sombra
do legado poético nacional e estrangeiro do entreguerras, Sebastião, ao reiniciar sua trajetória,
constatou que as questões que, 20
anos antes, pareciam urgentes, já
haviam sido equacionadas. Na segunda metade dos anos 70, o desafio que se impunha ao recém-chegado era o de optar seja por
um refinamento historicamente
consciente dos recursos de sua arte, seja pela exploração de uma
linguagem coloquial voltada para
as experiências cotidianas. Essa
aparente contraposição entre
vanguarda e contracultura oferecia, porém, tanto possibilidades
de síntese quanto brechas pelas
quais um autor podia escapar. E
Uchôa Leite esteve entre os que
logo o constataram.
Ele cultivou, portanto, em seus
livros, certa combinação de um
linguajar ilusoriamente despretensioso com temas e assuntos
provenientes de um universo
"high brow" acessível a poucos.
Mas, visto retrospectivamente, o
escritor dá menos a impressão de
ter realizado o amálgama feliz entre estilo coloquial e preocupações eruditas do que a de ter forjado para si uma terceira via, na
qual, em vez de descartar os recursos formais, ele os internalizou
de modo sutilmente econômico
em seus versos, aliando-os a referências culturais que lhe serviam
de atalho para falar sobre o que
quisesse, inclusive seu cotidiano,
sem se tornar banal.
Nada patenteia isso melhor do
que sua recusa, durante os anos
de hegemonia da MPB, em aderir
à melodiosidade graças à qual a
poesia de tantos contemporâneos
seus traía o desejo de se converter
em letra de música. Escolhendo a
dissonância e, não raro, a cacofonia, Sebastião chamava, em seus
textos, a atenção para aquilo de
que falava, só que, chegado a esse
ponto, o leitor se deparava não
com alguma revelação singela,
mas sim com um labirinto árduo
cuja saída dava para outro poema,
este para o seguinte e assim por
diante até que, começando a perceber sua topografia, ele se descobria dentro de uma obra cuidadosamente construída que, não obstante parecer modesta de fora,
ocultava em seu interior uma
inesgotabilidade singular.
Texto Anterior: Drauzio Varella: A terceira onda Próximo Texto: Michael Jackson: Menor precisaria de transplante Índice
|