São Paulo, terça-feira, 29 de novembro de 2005

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FERNANDO BONASSI

O problema do gado

Tudo leva a crer até mesmo aos ateus mais empedernidos que o problema do gado é o estado lamentável em que foi deixado. Afinal, esse gado está sendo criado só para ser abatido e ainda tem que posar como o bandido das péssimas condições de higiene em que vareja em busca de um sentido!
Não dá!
Nada de tal absurdo é exatamente culpa desses bichos passivos, mas daqueles outros, mais racionais, ainda que não menos animais em seus lesivos desejos carnívoros.
Desconfia-se até que o problema desse gado nem seja apenas brasileiro, mas talvez humano, quem sabe latino, senão "ladino americano" ou "brasiguaio" mesmo, já que uns e outros mais excitados e extraviados andam pulando as cercas de ambos os lados, quando deviam é se descontentar com os países que construíram e destruíram nessas guerras de esfarrapados...
Que diferença faz para o boi ralado se sua carne moída é consumida numa lanchonete de Assunção, numa padaria do bairro do Limão, num balcão de Veneza ou na gôndola de um supermercado na periferia de Fortaleza?
Será por essa fome mesquinha que o gado adoece?
Não terá nunca fome de outra coisa que não seja essa grama rala?!
Quem são os verdadeiros açougueiros dessa história?
O gado pode estar ficando engasgado e taciturno com as repetidas costelas que envia ao matadouro para as benesses de espécies alheias, enquanto recebe uma ração que mal dá para parar em pé na degola promovida por esses campos de concentração e trabalhos forçados.
Dá pra sentir a depressão desse gado com aqueles capatazes que deviam lhe prestar auxílio mas simplesmente não prestam, ou são incapazes... Além do mais, o gado que é pardo pode estar exaurido de ser confundido no escuro com marginal quando abordado por um policial que claramente se especializou no extermínio dos aflitos...
Há também muito gado que foi comprado por lebre e que agora chora o próprio leite derramado, isto também é um fato, ou um fardo, como queiram... Tem também a exceção de uma parte desse gado que incha de forma obscena em meio ao descalabro e sabe das safadezas que fez e das incertezas que espalhou para ser esquecido nas maiores sombras e com as melhores sobras desses repastos públicos de licitações privadas.
Quem ainda pode se servir dessas carnes mal passadas sem medo ou culpa? Que desculpa terão os comerciantes para aumentar o preço da injeção de desânimo à qual esse gado foi viciado?
Ou será que essas carnes outrora tão apreciadas não despertam mais a mesma água na boca de quem pode pagá-las para comê-las?
Serão essas vacas magras as mães desvairadas daqueles bois gordos supostamente seqüestrados dos pastos em que perambulavam teimosamente contra os interesses gastronômicos nacionais?
Ou os interesseiros seriam os eternos carniceiros profissionais?
Parece que é mais fácil remover, ou transpor, montanhas d'água do que compensar as mágoas históricas desse gado!
Como esse gado tem memória curta!
As fontes de verdadeira sabedoria andam tão escassas que até mesmo os grandes macacos evoluídos estão quebrando o galho dos menores atrasados, só pra não caírem juntos em meio aos furacões e enchentes dos escândalos...
Pode ser que esse gado esteja se sentindo como rato de laboratório, com todas essas teorias econômicas e sociais que, no frigir dos ovos está beneficiando mais aos frangos gripados, todos cercados de cuidados, do que os seus passos em falso nesses latifúndios grilados.
Os granjeiros chineses e demais camponeses do Oriente ao menos estão felizes com os homens que mandaram ao espaço, porque os daqui sabem na carne que o espaço é muito, mas tem o domínio de uns poucos abutres, ou escorpiões, já que preferem espetar os ferrões na própria cabeça do que pensar em distribuir as rendas e reses que acumulam desde as grande navegações.
Quer dizer: os exemplos dados ao gado mal convencem os patos aposentados!
O perigo real é que esse gado tenha finalmente percebido que a satisfação de uns é a escravidão dos outros, que ficam tontos diante de tantos ideais. Ou pior: que possa haver nesta espécie aparentemente mansa um tipo de eletricidade nova, uma vontade de novidade que é capaz de lançá-la contra esses cofres e porteiras mal trancadas... Assim, pode até ser que a febre do gado seja frescura, mas há uma mensagem obscura em sua febre: o gado pode estar doente porque sente a cabeça à prêmio de churrasco e porque pode ter decidido perecer a continuar servindo ao prazer dos vossos pratos assinados!
Já que não são donos de sua vida, podem estar querendo ser donos de sua morte... imaginem o prejuízo para os currais eleitorais!
Deus me livre, sô!


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