São Paulo, Quarta-feira, 29 de Dezembro de 1999


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Manoel de Oliveira leva padre Vieira ao cinema

Francisco Oliveira/Folha Imagem
O cineasta português Manoel de Oliveira durante as filmagens de "Palavra e Utopia", biografia do jesuíta luso-brasileiro padre Vieira



Aos 91 anos, o cineasta português filma no Brasil "Palavra e Utopia", biografia do jesuíta luso-brasileiro, e diz em entrevista à Folha que o único antídoto contra o cinema descartável é usar a mesma teimosia do autor de "Sermões"


CINEMA
Para Manoel de Oliveira, Deus é brasileiro

LEON CAKOFF
da Equipe de Articulistas

Ele é uma legenda. Um nome que resiste aos 91 anos de idade fazendo cinema e é o mais idoso cineasta ainda em ação. Um exemplo simples e complexo na sua retórica parnasiana e como cultor da língua portuguesa.
Ele é o cineasta Manoel de Oliveira, que passou pelo Brasil (Bahia e Maranhão) em outubro e terminou, na última sexta, no Vaticano, o seu 20º filme, "Palavra e Utopia", dedicado ao padre Antonio Vieira (1608-1697).
Esta entrevista exclusiva à Folha foi iniciada no telefone, continuou por fax e foi finalizada com as respostas manuscritas que o cineasta enviou por correio expresso, junto com as suas fotos prediletas, de autoria de seu neto Francisco Oliveira, tiradas durante as filmagens brasileiras.

Folha - Por que pinçar o padre Vieira como símbolo das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil?
Manoel de Oliveira -
Não há, nem houve nunca em filmes meus, nenhum sentido ou propósito de escolher histórias com o fim de envolver qualquer país na produção. Tenho, sim, o desejo de uma aproximação, tanto quanto me tem sido possível, de abordar temas e textos que derivem de histórias que me toquem e estejam próximas de uma realidade. "Palavra e Utopia" tem uma realidade histórica que está fortemente ligada a Portugal e ao Brasil. E isso contribui para uma aproximação, e até os une, como os une a matriz portuguesa das nossas línguas, como os une uma afetividade que faz dos dois povos uma só família e comporta neles um sentimento universalista também comum. E eu respondo, com a realidade histórica, à sua questão, embora não tome "Palavra e Utopia" como comemoração do achamento das Terras de Santa Cruz. Essa é outra história. O que me atraiu e me apaixona nesse filme é a figura de Vieira e, para além da sua forma literária, o contexto de seus sermões.

Folha - Estamos diante de um personagem excepcional, considerado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda como a principal personalidade luso-brasileira do seu século. Um século em que a oratória religiosa nos púlpitos era a única mídia permitida pelos colonizadores. É nesse meio que os sermões e a oratória barroca do padre Vieira cumprem sua função e se difundem. Por que as palavras sempre tiveram uma importância fundamental em seus filmes?
Oliveira -
A palavra, o som e a música têm para mim igual importância e, embora constituam no cinema elementos complementares, eu tenho-os nos meus filmes a cada qual como autônomo e independente, tal como, à maneira da velha arquitetura grega, quatro colunas separadas entre si suportam um só frontal que as une. Com respeito à primeira parte da sua pergunta, o padre Vieira foi, sem dúvida, uma figura extraordinária do seu tempo e ainda do tempo que vivemos hoje. E não porque os "púlpitos eram a única mídia permitida pelos colonizadores", mas porque ele fez questão de que os seus sermões ficassem gravados em letra redonda nos 15 tomos que deixou impressos antes e depois da sua morte, e a que hoje temos acesso. Lendo-os agora sentimos, por vezes, uma perturbada atualidade com respeito aos negros e, talvez, mais ainda, aos índios. O que se passa na cabeça dos grandes espíritos nem sempre é levado a uma prática plena. Por isso se chama este filme "Palavra e Utopia".

Folha - Sentimos, nos sermões do padre Vieira, as oratórias de um jesuíta, um príncipe e um militar, ao mesmo tempo. Um absolutista e, ao mesmo tempo, um humanista contra o massacre de índios e negros, a perseguição aos judeus e cristãos novos. Como se dará no filme a passagem do pregador do século 17 para o 21?
Oliveira -
Não há passagem, porque não há atualização para um Vieira de hoje. A atualidade do padre Vieira tem três séculos. Tento fazer uma evocação, e a sua pergunta é perspicaz, porque não fazendo uma reconstituição, o que custaria fortunas de que não dispomos, recorremos modestamente aos lugares por onde ele passou e pregou, lugares que, em grande parte, foram modificados, o que nos obriga a um campo muito restrito, no desejo de nos aproximar o mais possível de um rigor histórico sem, não obstante, cair no documentário, ou num filme de pretensão histórica. Restringimo-nos a uma ficção recorrendo aos lugares e aos elementos possíveis, numa tentativa de correção histórica.

Folha - Já em seus "Sermões", padre Vieira perguntava a Deus se Ele passara a ser holandês, abandonando o Brasil à sua sorte frente ao invasor. Em suas recentes filmagens na Bahia e em São Luis do Maranhão, o sr. acha que Deus voltou a ser brasileiro?
Oliveira -
Sabe o que penso? Penso que Deus já era brasileiro quando Pedro Álvares Cabral achou Terras de Vera Cruz. Já era brasileiro quando d. Pedro 4º, de Portugal, deu a independência, apesar de a escravatura ter ainda continuado por longo tempo; quando recebeu uma base cultural, uma língua que não era a dos nativos; quando acolheu padre Vieira no seu seio.

Folha - Em recente artigo publicado na Folha, o crítico Inácio Araujo disse que "A Carta", seu filme mais recente, era um dos melhores da década, lamentando a falta de espaço para a sua obra no mercado brasileiro. Como reverter para filmes como os seus as platéias imbecilizadas de todo o mundo pelo cinema descartável?
Oliveira -
Procedendo com igual teimosia à do padre Vieira.

Folha - Uma vez o sr. me disse que o segredo da sua longevidade estava nos grelhados. Pode nos passar algumas receitas?
Oliveira -
Bem, gostaria, mas o Deus de Portugal, do Brasil e de todo o mundo é o único possuidor de tais receitas. Eu por cá me vou contentando com os grelhados, com os cozidos e outros pitéus que dão gosto à vida e a sustentam, mas morria se não me deixassem fazer os meus filmes.


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