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Manoel de Oliveira leva padre Vieira ao cinema
Francisco Oliveira/Folha Imagem
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O cineasta português Manoel de Oliveira durante as filmagens de "Palavra e Utopia", biografia do jesuíta luso-brasileiro padre Vieira |
Aos 91 anos, o cineasta português filma no Brasil "Palavra e Utopia", biografia do jesuíta luso-brasileiro, e diz em entrevista à Folha que o único antídoto contra o cinema descartável é usar a mesma teimosia do autor de "Sermões"
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CINEMA
Para Manoel de Oliveira, Deus é brasileiro
LEON CAKOFF
da Equipe de Articulistas
Ele é uma legenda. Um nome
que resiste aos 91 anos de idade
fazendo cinema e é o mais idoso
cineasta ainda em ação. Um
exemplo simples e complexo na
sua retórica parnasiana e como
cultor da língua portuguesa.
Ele é o cineasta Manoel de Oliveira, que passou pelo Brasil (Bahia e Maranhão) em outubro e
terminou, na última sexta, no Vaticano, o seu 20º filme, "Palavra e
Utopia", dedicado ao padre Antonio Vieira (1608-1697).
Esta entrevista exclusiva à Folha
foi iniciada no telefone, continuou por fax e foi finalizada com
as respostas manuscritas que o cineasta enviou por correio expresso, junto com as suas fotos prediletas, de autoria de seu neto Francisco Oliveira, tiradas durante as
filmagens brasileiras.
Folha - Por que pinçar o padre
Vieira como símbolo das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil?
Manoel de Oliveira - Não há,
nem houve nunca em filmes
meus, nenhum sentido ou propósito de escolher histórias com o
fim de envolver qualquer país na
produção. Tenho, sim, o desejo de
uma aproximação, tanto quanto
me tem sido possível, de abordar
temas e textos que derivem de
histórias que me toquem e estejam próximas de uma realidade.
"Palavra e Utopia" tem uma realidade histórica que está fortemente ligada a Portugal e ao Brasil. E
isso contribui para uma aproximação, e até os une, como os une
a matriz portuguesa das nossas
línguas, como os une uma afetividade que faz dos dois povos uma
só família e comporta neles um
sentimento universalista também
comum. E eu respondo, com a
realidade histórica, à sua questão,
embora não tome "Palavra e Utopia" como comemoração do
achamento das Terras de Santa
Cruz. Essa é outra história. O que
me atraiu e me apaixona nesse filme é a figura de Vieira e, para
além da sua forma literária, o contexto de seus sermões.
Folha - Estamos diante de um
personagem excepcional, considerado pelo historiador Sérgio
Buarque de Holanda como a
principal personalidade luso-brasileira do seu século. Um século em que a oratória religiosa
nos púlpitos era a única mídia
permitida pelos colonizadores.
É nesse meio que os sermões e a
oratória barroca do padre Vieira
cumprem sua função e se difundem. Por que as palavras sempre tiveram uma importância
fundamental em seus filmes?
Oliveira - A palavra, o som e a
música têm para mim igual importância e, embora constituam
no cinema elementos complementares, eu tenho-os nos meus
filmes a cada qual como autônomo e independente, tal como, à
maneira da velha arquitetura grega, quatro colunas separadas entre si suportam um só frontal que
as une. Com respeito à primeira
parte da sua pergunta, o padre
Vieira foi, sem dúvida, uma figura
extraordinária do seu tempo e
ainda do tempo que vivemos hoje. E não porque os "púlpitos
eram a única mídia permitida pelos colonizadores", mas porque
ele fez questão de que os seus sermões ficassem gravados em letra
redonda nos 15 tomos que deixou
impressos antes e depois da sua
morte, e a que hoje temos acesso.
Lendo-os agora sentimos, por vezes, uma perturbada atualidade
com respeito aos negros e, talvez,
mais ainda, aos índios. O que se
passa na cabeça dos grandes espíritos nem sempre é levado a uma
prática plena. Por isso se chama
este filme "Palavra e Utopia".
Folha - Sentimos, nos sermões
do padre Vieira, as oratórias de
um jesuíta, um príncipe e um
militar, ao mesmo tempo. Um
absolutista e, ao mesmo tempo,
um humanista contra o massacre de índios e negros, a perseguição aos judeus e cristãos novos. Como se dará no filme a
passagem do pregador do século 17 para o 21?
Oliveira - Não há passagem,
porque não há atualização para
um Vieira de hoje. A atualidade
do padre Vieira tem três séculos.
Tento fazer uma evocação, e a sua
pergunta é perspicaz, porque não
fazendo uma reconstituição, o
que custaria fortunas de que não
dispomos, recorremos modestamente aos lugares por onde ele
passou e pregou, lugares que, em
grande parte, foram modificados,
o que nos obriga a um campo
muito restrito, no desejo de nos
aproximar o mais possível de um
rigor histórico sem, não obstante,
cair no documentário, ou num filme de pretensão histórica. Restringimo-nos a uma ficção recorrendo aos lugares e aos elementos
possíveis, numa tentativa de correção histórica.
Folha - Já em seus "Sermões",
padre Vieira perguntava a Deus
se Ele passara a ser holandês,
abandonando o Brasil à sua sorte frente ao invasor. Em suas recentes filmagens na Bahia e em
São Luis do Maranhão, o sr.
acha que Deus voltou a ser brasileiro?
Oliveira - Sabe o que penso?
Penso que Deus já era brasileiro
quando Pedro Álvares Cabral
achou Terras de Vera Cruz. Já era
brasileiro quando d. Pedro 4º, de
Portugal, deu a independência,
apesar de a escravatura ter ainda
continuado por longo tempo;
quando recebeu uma base cultural, uma língua que não era a dos
nativos; quando acolheu padre
Vieira no seu seio.
Folha - Em recente artigo publicado na Folha, o crítico Inácio Araujo disse que "A Carta",
seu filme mais recente, era um
dos melhores da década, lamentando a falta de espaço para a
sua obra no mercado brasileiro.
Como reverter para filmes como
os seus as platéias imbecilizadas de todo o mundo pelo cinema descartável?
Oliveira - Procedendo com
igual teimosia à do padre Vieira.
Folha - Uma vez o sr. me disse
que o segredo da sua longevidade estava nos grelhados. Pode nos passar algumas receitas?
Oliveira - Bem, gostaria, mas o
Deus de Portugal, do Brasil e de
todo o mundo é o único possuidor de tais receitas. Eu por cá me
vou contentando com os grelhados, com os cozidos e outros pitéus que dão gosto à vida e a sustentam, mas morria se não me
deixassem fazer os meus filmes.
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