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MARCELO COELHO
A perfeição e o vazio de um distante 2000
Pelo que ouço dizer, o réveillon
do ano 2000 vai ser menos do que
se pensava. As agências de turismo baixaram o preço dos pacotes,
não conheço ninguém que esteja
planejando algo de tão especial
assim, não há muita histeria no
ar.
As pessoas de bom senso parecem reagir à hiperexploração
mercadológica e midiática (que
língua, essa que estou usando!)
que acompanha a suposta virada
do milênio. "Será um dia como
outro qualquer", disse-me uma
amiga refratária a modas e oba-obas.
Concordo. Gostaria de passar o
réveillon sozinho, vendo TV, com
um boné do Mickey na cabeça e
um pacote de batatas fritas na
mão. Só que, nessa atitude contrária ao ano 2000, existe também
algo de questionável.
É como se fosse a confissão de
nossa incapacidade de virar o ano
cabalístico. De certo modo, sinto-me pequeno diante da estridência
da data. Negar a mercadologia
em torno do ano 2000 é também
negar minha capacidade de enfrentá-lo. Eu deveria, como o Manuel Bandeira de "Vou-me Embora pra Pasárgada", fazer ginástica, tomar banhos de mar. Não
sou capaz.
Mais do que isso. Eu deveria me
transformar, de repente, num cidadão típico do ano 2000: roupas
de acrílico, cabelo platinado, circuitos eletrônicos na cabeça enorme, olhos de zinco, gestos bruscos,
voz digital, sangue de mercúrio
frio.
É desse modo que, ao longo de
décadas, vínhamos projetando a
vida no novo milênio. A decepção
diante do fato de que continuamos humanos explica, talvez, a
modéstia do réveillon.
O que era o ano 2000, há coisa
de 20 ou 30 anos? Era um mundo
silencioso e impessoal. Era a utopia modernista levada ao extremo, isto é, ao vazio, ao minimalismo.
Tudo seria branco ou de metal.
O deslocamento, quando necessário, seria feito pelo ar, não pela
terra. A luz seria constante e fluorescente. Não haveria subjetividade. Não haveria conflito. A própria questão de se alguém é feliz
ou não seria tola: deslizaríamos
num ambiente nada hostil, sem
família, sem amor, sem religião,
sem medo. Adotaríamos uma
compostura robótica, racionalista, absolvida de máculas.
A idéia de limpeza, de brancura,
de suavidade impessoal e de silêncio estava associada ao ano 2000.
Por várias razões. Em primeiro lugar, porque o ano 2000 seria a intensificação utópica de um sonho
modernista, o dos arquitetos que
diziam que "todo ornamento é
crime", que "forma é função", que
"menos é mais". Quantos sacerdotes!
A pureza racional da arquitetura moderna (Loos, Gropius, Van
der Rohe) identificava o progresso
com o fim do individualismo burguês. Aliava-se aos avanços da
"técnica" -último bastião da
universalidade depois do século
18.
Pois, certamente, o mundo da
eficácia técnica é inquestionável;
um curdo, um pataxó são capazes
de perceber o que funciona bem e
o que funciona mal. Daí que pensássemos no século 21 como o de
um triunfo branco sobre a rusticidade heterogênea da vida. A razão -entidade à qual o modernismo arquitetônico se apegou-
teria poderes que o coração desconhece. Ilusão irritante.
O que se viu, na verdade, foi o
colapso dessa crença. O edifício de
cristal, o meio ambiente de oxigênio puro, o silêncio do ano 2000
-essa utopia moderna se desmantela aos nossos olhos.
É comum dizer que o final do século 20 se caracteriza pelo fim do
socialismo, e, com isso, o fim de todo empenho utópico. É verdade.
Mas há outro empenho utópico,
que a meu ver entra em declínio
nesta passagem de século.
É a crença em tudo que se associe a técnica, globalização, mercado, progresso. Na década de 60,
esperava-se muito do ano 2000.
Hoje, é claro, vivemos a data como um surto digital no despertador. Acordamos diante de um
mundo sujo, barulhento, estridente; congestionamentos de trânsito,
epidemias, poluição. Nada de um
limpo filme de ficção científica como "THX 1138", de George Lucas.
Nem mesmo o pesadelo de uma
sociedade controlada, como em
"1984".
Islâmicos, místicos, consumistas, todas as tribos se encarregam
de vencer a utopia técnica e moderna que se associa ao ano 2000.
Vivemos num mundo barulhento
e desigual, belicoso e sujo.
A quantidade de zeros na cifra
2000 talvez represente um vazio,
uma pureza que esperávamos ter.
Esses zeros, esse vazio correspondem à imagem que fazemos
de duas coisas. De um lado, a perfeição: os zeros seriam a confirmação gélida de nosso auge tecnológico. De outro, o vazio: um
nada mais, um fim de mundo sem
destruição, uma estabilização da
humanidade rolando sobre ladrilhos de hospital, na plenitude de
quem conseguiu abolir o "eu", a
doença que é o "eu".
Felizmente, estamos longe desse
ano 2000. Infelizmente, estamos
longe dele também. Enquanto isso, a razão, mais uma vez traída,
suspira diante da população de
primatas em que continua a depositar tanta esperança.
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