São Paulo, Quarta-feira, 29 de Dezembro de 1999


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MARCELO COELHO
A perfeição e o vazio de um distante 2000

Pelo que ouço dizer, o réveillon do ano 2000 vai ser menos do que se pensava. As agências de turismo baixaram o preço dos pacotes, não conheço ninguém que esteja planejando algo de tão especial assim, não há muita histeria no ar.
As pessoas de bom senso parecem reagir à hiperexploração mercadológica e midiática (que língua, essa que estou usando!) que acompanha a suposta virada do milênio. "Será um dia como outro qualquer", disse-me uma amiga refratária a modas e oba-obas.
Concordo. Gostaria de passar o réveillon sozinho, vendo TV, com um boné do Mickey na cabeça e um pacote de batatas fritas na mão. Só que, nessa atitude contrária ao ano 2000, existe também algo de questionável.
É como se fosse a confissão de nossa incapacidade de virar o ano cabalístico. De certo modo, sinto-me pequeno diante da estridência da data. Negar a mercadologia em torno do ano 2000 é também negar minha capacidade de enfrentá-lo. Eu deveria, como o Manuel Bandeira de "Vou-me Embora pra Pasárgada", fazer ginástica, tomar banhos de mar. Não sou capaz.
Mais do que isso. Eu deveria me transformar, de repente, num cidadão típico do ano 2000: roupas de acrílico, cabelo platinado, circuitos eletrônicos na cabeça enorme, olhos de zinco, gestos bruscos, voz digital, sangue de mercúrio frio.
É desse modo que, ao longo de décadas, vínhamos projetando a vida no novo milênio. A decepção diante do fato de que continuamos humanos explica, talvez, a modéstia do réveillon.
O que era o ano 2000, há coisa de 20 ou 30 anos? Era um mundo silencioso e impessoal. Era a utopia modernista levada ao extremo, isto é, ao vazio, ao minimalismo.
Tudo seria branco ou de metal. O deslocamento, quando necessário, seria feito pelo ar, não pela terra. A luz seria constante e fluorescente. Não haveria subjetividade. Não haveria conflito. A própria questão de se alguém é feliz ou não seria tola: deslizaríamos num ambiente nada hostil, sem família, sem amor, sem religião, sem medo. Adotaríamos uma compostura robótica, racionalista, absolvida de máculas.
A idéia de limpeza, de brancura, de suavidade impessoal e de silêncio estava associada ao ano 2000. Por várias razões. Em primeiro lugar, porque o ano 2000 seria a intensificação utópica de um sonho modernista, o dos arquitetos que diziam que "todo ornamento é crime", que "forma é função", que "menos é mais". Quantos sacerdotes!
A pureza racional da arquitetura moderna (Loos, Gropius, Van der Rohe) identificava o progresso com o fim do individualismo burguês. Aliava-se aos avanços da "técnica" -último bastião da universalidade depois do século 18.
Pois, certamente, o mundo da eficácia técnica é inquestionável; um curdo, um pataxó são capazes de perceber o que funciona bem e o que funciona mal. Daí que pensássemos no século 21 como o de um triunfo branco sobre a rusticidade heterogênea da vida. A razão -entidade à qual o modernismo arquitetônico se apegou- teria poderes que o coração desconhece. Ilusão irritante.
O que se viu, na verdade, foi o colapso dessa crença. O edifício de cristal, o meio ambiente de oxigênio puro, o silêncio do ano 2000 -essa utopia moderna se desmantela aos nossos olhos.
É comum dizer que o final do século 20 se caracteriza pelo fim do socialismo, e, com isso, o fim de todo empenho utópico. É verdade. Mas há outro empenho utópico, que a meu ver entra em declínio nesta passagem de século.
É a crença em tudo que se associe a técnica, globalização, mercado, progresso. Na década de 60, esperava-se muito do ano 2000. Hoje, é claro, vivemos a data como um surto digital no despertador. Acordamos diante de um mundo sujo, barulhento, estridente; congestionamentos de trânsito, epidemias, poluição. Nada de um limpo filme de ficção científica como "THX 1138", de George Lucas. Nem mesmo o pesadelo de uma sociedade controlada, como em "1984".
Islâmicos, místicos, consumistas, todas as tribos se encarregam de vencer a utopia técnica e moderna que se associa ao ano 2000. Vivemos num mundo barulhento e desigual, belicoso e sujo.
A quantidade de zeros na cifra 2000 talvez represente um vazio, uma pureza que esperávamos ter.
Esses zeros, esse vazio correspondem à imagem que fazemos de duas coisas. De um lado, a perfeição: os zeros seriam a confirmação gélida de nosso auge tecnológico. De outro, o vazio: um nada mais, um fim de mundo sem destruição, uma estabilização da humanidade rolando sobre ladrilhos de hospital, na plenitude de quem conseguiu abolir o "eu", a doença que é o "eu".
Felizmente, estamos longe desse ano 2000. Infelizmente, estamos longe dele também. Enquanto isso, a razão, mais uma vez traída, suspira diante da população de primatas em que continua a depositar tanta esperança.


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