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LIVROS/LANÇAMENTOS
"OSSOS DE SÉPIA"
Tradução da obra-prima do poeta italiano deixa a desejar
Eugenio Montale cria poesia com a experiência humilde
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
"Ossos de Sépia" é um dos
maiores livros de poesia
do século 20. Publicado pela primeira vez em 1925, numa Itália
que acabava de ingressar no pesadelo do fascismo, marcou a estréia poética de Eugenio Montale
(1896-1981), Prêmio Nobel de Literatura de 1975.
Junto com Salvatore Quasimodo e Giuseppe Ungaretti, Montale
está associado ao que se costuma
chamar de "poesia pura", ou de
"hermetismo", tendência que dominou a poesia italiana por volta
de 1930.
Como todo rótulo, esse de "hermetismo" não significa muito. E
hoje menos ainda, pois certamente a poesia de Montale não nos parece tão enigmática e difícil como
o terá sido para o leitor de 70 ou
80 anos atrás.
"Tendem à claridade as coisas
obscuras", diz o poeta. Não sem
pessimismo, aliás; o mesmo poema sugere que essa claridade é sinal de que "os corpos se exaurem"
e "evapora-se a vida", a exemplo
do que ocorre com "o girassol
enlouquecido de luz".
Montale não parece flertar com
o mistério, com os segredos poéticos ao alcance de uns poucos iniciados. "Escuta-me", diz ele em
"Os Limões", "os poetas laureados/ movem-se tão-somente entre as plantas/ de nomes pouco
usados: buxos ligustros e acantos./ Eu, por mim, gosto de caminhos que levam às agrestes/ valas
aonde em poças/ já meio secas rapazes apanham/ alguma enguia
miúda (...)."
Mas essa preferência pelo tom
humilde, pela experiência despojada e essencial, não tem muito de
alegre e positivo. Reflete, antes,
um sentido de resignação e desistência. Montale avisa o leitor:
"Não nos peças a fórmula que te
possa abrir mundos,/ e sim alguma sílaba torcida e seca como um
ramo./ Hoje apenas podemos dizer-te/ o que não somos, o que
não queremos".
Em algum momento tivemos a
possibilidade de desvendar, como
no poema de Drummond, a "máquina do mundo"; mas a ocasião
foi perdida. Não é que nossa existência se passe em meio às sombras, que estejamos mergulhados
num abismo incompreensível. É
como se a claridade nos ofuscasse,
e pouco nos tenha restado a experimentar da existência; a não ser,
diz outro poema, caminhar numa
tarde de calor junto a um "abrasado muro" que "tem em cima cacos agudos de garrafa".
O excesso de luz, o sol do verão,
a paisagem árida e marinha da Ligúria são evocados em inúmeros
poemas deste livro. Quase sempre, é meio-dia. Não se celebra,
com isso, a plenitude do mundo
sensível, pois "o ar é tão límpido
que escurece". Ao contrário, esse
sol a pino parece acentuar em nós
uma necessidade de ruptura, a aspiração por algo que, nas palavras
de um crítico, fraturasse "o bloco
monótono do tempo".
Essa ruptura aparece, nos poemas de Montale, sob a forma de
uma tempestade súbita. "Arsênio", um dos grandes momentos
desse livro, descreve os turbilhões
da chuva numa avenida à beira-mar. "Será o instante/ talvez, muito esperado, que te salve/ do findar tua viagem (...)/ aceno de
uma/ vida sufocada que para ti
surgira,/ e o vento a leva na cinza
dos astros."
Depois da tempestade, diz
"Égloga", "a horta de feijões/ ficou desfeita e revolta"; mas, logo
em seguida, a paisagem já se recompusera: "não se lia mais na face/ do mundo um traço/ do frenesi suportado/ toda a tarde". Retorna-se a um "ar de excessiva quietude", onde, para citar outros
poemas do livro, "as coisas não
pedem nada mais que durar, que
persistir contentes da infinita fadiga", e o poeta declara: "sinto hoje/ minha imobilidade como um
tormento".
Montale iria, entretanto, seguir
por novos caminhos. Seus últimos versos, cheios de alusões biográficas e de tom mais descontraído, foram publicados no Brasil
pela Record ("Diário Póstumo",
tradução de Ivo Barroso). Há uma
antologia com tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti ("Poesias"), pela mesma editora, que
acompanha todas as fases da produção montaliana.
Esta edição bilíngue de "Ossos
de Sépia" traz muitas notas explicativas e revela um intenso trabalho de pesquisa. Infelizmente,
contribui bastante para a aura de
obscuridade que ainda cerca o
nome de Montale.
Para o leitor brasileiro, ao menos, fica tão difícil entender o português quanto o italiano em passagens como esta: "Os meninos
de arquinhos/ espantam as carriças nas tocas./ Coa ociosa a limpidez no riacho/ que a acídia solinha (...)". Outros versos falam de
um "clivo" (ladeira, encosta), de
"bastões de torrão" (torrone, a
guloseima) e de "prata frusta"
(gasta). Para não usar as palavras
"papagaio", "pipa", ou "pandorga", traduz-se "aquiloni" por
"vias": "faixas de luz se estendem/
como vias ao céu que retumba".
Enquanto isso, ao longe, vê-se o
"fumo de um casal" (fumaça que
sai de um casario, pequena aldeia). Nada que a consulta a um
dicionário não dissipe; mas, para
os padrões de tradução poética
que já temos no Brasil, o resultado
deixa muito a desejar.
Ossos de Sépia
Ossi di Seppia
Autor: Eugenio Montale
Tradução: Renato Xavier
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 27 (230 págs.)
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