São Paulo, sábado, 29 de dezembro de 2001

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"OSSOS DE SÉPIA"

Tradução da obra-prima do poeta italiano deixa a desejar

Eugenio Montale cria poesia com a experiência humilde

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

"Ossos de Sépia" é um dos maiores livros de poesia do século 20. Publicado pela primeira vez em 1925, numa Itália que acabava de ingressar no pesadelo do fascismo, marcou a estréia poética de Eugenio Montale (1896-1981), Prêmio Nobel de Literatura de 1975.
Junto com Salvatore Quasimodo e Giuseppe Ungaretti, Montale está associado ao que se costuma chamar de "poesia pura", ou de "hermetismo", tendência que dominou a poesia italiana por volta de 1930.
Como todo rótulo, esse de "hermetismo" não significa muito. E hoje menos ainda, pois certamente a poesia de Montale não nos parece tão enigmática e difícil como o terá sido para o leitor de 70 ou 80 anos atrás.
"Tendem à claridade as coisas obscuras", diz o poeta. Não sem pessimismo, aliás; o mesmo poema sugere que essa claridade é sinal de que "os corpos se exaurem" e "evapora-se a vida", a exemplo do que ocorre com "o girassol enlouquecido de luz".
Montale não parece flertar com o mistério, com os segredos poéticos ao alcance de uns poucos iniciados. "Escuta-me", diz ele em "Os Limões", "os poetas laureados/ movem-se tão-somente entre as plantas/ de nomes pouco usados: buxos ligustros e acantos./ Eu, por mim, gosto de caminhos que levam às agrestes/ valas aonde em poças/ já meio secas rapazes apanham/ alguma enguia miúda (...)."
Mas essa preferência pelo tom humilde, pela experiência despojada e essencial, não tem muito de alegre e positivo. Reflete, antes, um sentido de resignação e desistência. Montale avisa o leitor: "Não nos peças a fórmula que te possa abrir mundos,/ e sim alguma sílaba torcida e seca como um ramo./ Hoje apenas podemos dizer-te/ o que não somos, o que não queremos".
Em algum momento tivemos a possibilidade de desvendar, como no poema de Drummond, a "máquina do mundo"; mas a ocasião foi perdida. Não é que nossa existência se passe em meio às sombras, que estejamos mergulhados num abismo incompreensível. É como se a claridade nos ofuscasse, e pouco nos tenha restado a experimentar da existência; a não ser, diz outro poema, caminhar numa tarde de calor junto a um "abrasado muro" que "tem em cima cacos agudos de garrafa".
O excesso de luz, o sol do verão, a paisagem árida e marinha da Ligúria são evocados em inúmeros poemas deste livro. Quase sempre, é meio-dia. Não se celebra, com isso, a plenitude do mundo sensível, pois "o ar é tão límpido que escurece". Ao contrário, esse sol a pino parece acentuar em nós uma necessidade de ruptura, a aspiração por algo que, nas palavras de um crítico, fraturasse "o bloco monótono do tempo".
Essa ruptura aparece, nos poemas de Montale, sob a forma de uma tempestade súbita. "Arsênio", um dos grandes momentos desse livro, descreve os turbilhões da chuva numa avenida à beira-mar. "Será o instante/ talvez, muito esperado, que te salve/ do findar tua viagem (...)/ aceno de uma/ vida sufocada que para ti surgira,/ e o vento a leva na cinza dos astros."
Depois da tempestade, diz "Égloga", "a horta de feijões/ ficou desfeita e revolta"; mas, logo em seguida, a paisagem já se recompusera: "não se lia mais na face/ do mundo um traço/ do frenesi suportado/ toda a tarde". Retorna-se a um "ar de excessiva quietude", onde, para citar outros poemas do livro, "as coisas não pedem nada mais que durar, que persistir contentes da infinita fadiga", e o poeta declara: "sinto hoje/ minha imobilidade como um tormento".
Montale iria, entretanto, seguir por novos caminhos. Seus últimos versos, cheios de alusões biográficas e de tom mais descontraído, foram publicados no Brasil pela Record ("Diário Póstumo", tradução de Ivo Barroso). Há uma antologia com tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti ("Poesias"), pela mesma editora, que acompanha todas as fases da produção montaliana.
Esta edição bilíngue de "Ossos de Sépia" traz muitas notas explicativas e revela um intenso trabalho de pesquisa. Infelizmente, contribui bastante para a aura de obscuridade que ainda cerca o nome de Montale.
Para o leitor brasileiro, ao menos, fica tão difícil entender o português quanto o italiano em passagens como esta: "Os meninos de arquinhos/ espantam as carriças nas tocas./ Coa ociosa a limpidez no riacho/ que a acídia solinha (...)". Outros versos falam de um "clivo" (ladeira, encosta), de "bastões de torrão" (torrone, a guloseima) e de "prata frusta" (gasta). Para não usar as palavras "papagaio", "pipa", ou "pandorga", traduz-se "aquiloni" por "vias": "faixas de luz se estendem/ como vias ao céu que retumba". Enquanto isso, ao longe, vê-se o "fumo de um casal" (fumaça que sai de um casario, pequena aldeia). Nada que a consulta a um dicionário não dissipe; mas, para os padrões de tradução poética que já temos no Brasil, o resultado deixa muito a desejar.


Ossos de Sépia
Ossi di Seppia     
Autor: Eugenio Montale
Tradução: Renato Xavier
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 27 (230 págs.)




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