São Paulo, sábado, 29 de dezembro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

Desenho animado

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

O teatro de Qorpo-Santo levanta uma questão interessante sobre o lugar da arte. Nascido José Joaquim dos Campos Leão, no Rio Grande do Sul, Qorpo-Santo (1829-1883) hoje poderia ser visto como um antepassado literário de Arthur Bispo do Rosário (1911-1989), o louco cujos textos, objetos, trajes e bordados, quando alçados à esfera desgastada da arte contemporânea, irradiam uma força que a maioria das obras em volta já não consegue produzir, por mais que apele para a sensação do espetáculo. Pelo menos do ponto de vista da expressão.
Assim como os textos de Bispo, que formam uma espécie de Bíblia ou mitologia pessoal pelo levantamento da sua própria experiência no mundo, Qorpo-Santo escreveu nove volumes de uma "Ensiqlopédia", reunindo artigos, reflexões, poemas, interpretações dos Evangelhos e peças em grande parte auto-referentes, que resumem a sua visão de mundo.
Foi acusado de louco pela família e só não foi internado porque, ao contrário de Bispo, diagnosticaram-lhe apenas uma "exaltação cerebral". Como Bispo, no entanto, só começou a escrever sua obra depois do aparecimento das perturbações mentais -quando assumiu o pseudônimo com que pretendia revelar o aspecto divino da sua missão intelectual de profeta.
Suas 17 peças, reunidas num único volume da "Ensiqlopédia", foram resgatadas na segunda metade do século 20 e tomadas, em retrospectiva, como precursoras do surrealismo e do teatro do absurdo. São muito curtas e têm aparência de comédias de costumes, mas sob uma ótica desvairada em que a própria comédia deixa de fazer sentido (não há continuidade lógica) e o riso passa a ser decorrência do "nonsense", de reações inesperadas e inexplicáveis.
Qorpo-Santo rouba o sentido que os homens atribuem ao mundo investidos da missão de dar continuidade a suas vidas. E põe no lugar desse vazio o riso da perda, e não o seu lamento. As identidades dos seus personagens são móveis, decorrentes de suas ações. Mas o sentido das ações só é dado a posteriori: "Fiz uma genuflexão sem querer! O que vale é que pode ter aplicação à senhora (...) que diante de mim vejo", diz um deles ao tropeçar na escada.
Ninguém sabe por que faz isto ou aquilo. Tudo é escatologia e sexo, ação e reação, inclusive o que se diz, muitas vezes sem a menor coerência psicológica. Os personagens beijam-se, agarram-se, batem uns nos outros, caem uns por cima dos outros: "Este mundo é incompreensível! E direi mais: é um enredo em que todos vivem e de que só a morte os safa!".
Na verdade, nem a morte. Os corpos dos personagens de Qorpo-Santo são desmembráveis, como se fossem postiços. Podem perder o queixo ou uma orelha. Não há maiores consequências, como se os indivíduos fossem as figurinhas que nunca morrem, a despeito das armadilhas mortais, nas perseguições dos desenhos animados.
Essa inconsequência produz um efeito dúbio. Em teoria, é bastante radical, mas na prática fica difícil manter o interesse por um texto em que o encadeamento só faz sentido como revelação da sua falta de sentido. Ao contrário do teatro do absurdo ou mesmo do surrealismo, o teatro de Qorpo-Santo "não é uma racionalização do irracional (...), mas o irracional em estado bruto", escreve Eudynir Fraga no prefácio.
Se por um lado essa naturalidade irracional é uma força (como no caso de Bispo), por outro só um discurso racional poderá resgatá-la a posteriori como arte. Embora muito saudável, há uma ambiguidade na defesa dessa "autenticidade artística da loucura", já que ela é produto de uma apreensão racional posterior que, sem querer, põe em questão o próprio lugar da arte.
No caso de Qorpo-Santo, por exemplo, sua apreciação como fenômeno precursor do surrealismo e do teatro do absurdo depende de um tanto de mistificação. A loucura de Qorpo-Santo é natural e suas peças são a expressão direta da sua personalidade. Fora do contexto biográfico do autor encarado como fenômeno, elas se sustentam mal.
E, quando tais peças são postas num contexto literário mais amplo -se comparadas a manifestações artísticas anteriores, como o teatro de Jakob Lenz, que também era considerado no século anterior uma personalidade perturbada-, acabam ganhando contornos bem menos inovadores.


Teatro Completo    
Autor: Qorpo-Santo
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 39 (334 págs.)




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