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RESENHA DA SEMANA
Desenho animado
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
O teatro de Qorpo-Santo
levanta uma questão interessante sobre o lugar da arte.
Nascido José Joaquim dos Campos Leão, no Rio Grande do Sul,
Qorpo-Santo (1829-1883) hoje
poderia ser visto como um antepassado literário de Arthur Bispo do Rosário (1911-1989), o louco cujos textos, objetos, trajes e
bordados, quando alçados à esfera desgastada da arte contemporânea, irradiam uma força
que a maioria das obras em volta já não consegue produzir, por
mais que apele para a sensação
do espetáculo. Pelo menos do
ponto de vista da expressão.
Assim como os textos de Bispo, que formam uma espécie de
Bíblia ou mitologia pessoal pelo
levantamento da sua própria experiência no mundo, Qorpo-Santo escreveu nove volumes de
uma "Ensiqlopédia", reunindo
artigos, reflexões, poemas, interpretações dos Evangelhos e peças em grande parte auto-referentes, que resumem a sua visão
de mundo.
Foi acusado de louco pela família e só não foi internado porque, ao contrário de Bispo, diagnosticaram-lhe apenas uma
"exaltação cerebral". Como Bispo, no entanto, só começou a escrever sua obra depois do aparecimento das perturbações mentais -quando assumiu o pseudônimo com que pretendia revelar o aspecto divino da sua
missão intelectual de profeta.
Suas 17 peças, reunidas num
único volume da "Ensiqlopédia", foram resgatadas na segunda metade do século 20 e tomadas, em retrospectiva, como
precursoras do surrealismo e do
teatro do absurdo. São muito
curtas e têm aparência de comédias de costumes, mas sob uma
ótica desvairada em que a própria comédia deixa de fazer sentido (não há continuidade lógica) e o riso passa a ser decorrência do "nonsense", de reações
inesperadas e inexplicáveis.
Qorpo-Santo rouba o sentido
que os homens atribuem ao
mundo investidos da missão de
dar continuidade a suas vidas. E
põe no lugar desse vazio o riso
da perda, e não o seu lamento.
As identidades dos seus personagens são móveis, decorrentes
de suas ações. Mas o sentido das
ações só é dado a posteriori: "Fiz
uma genuflexão sem querer! O
que vale é que pode ter aplicação
à senhora (...) que diante de
mim vejo", diz um deles ao tropeçar na escada.
Ninguém sabe por que faz isto
ou aquilo. Tudo é escatologia e
sexo, ação e reação, inclusive o
que se diz, muitas vezes sem a
menor coerência psicológica. Os
personagens beijam-se, agarram-se, batem uns nos outros,
caem uns por cima dos outros:
"Este mundo é incompreensível! E direi mais: é um enredo
em que todos vivem e de que só
a morte os safa!".
Na verdade, nem a morte. Os
corpos dos personagens de Qorpo-Santo são desmembráveis,
como se fossem postiços. Podem perder o queixo ou uma
orelha. Não há maiores consequências, como se os indivíduos
fossem as figurinhas que nunca
morrem, a despeito das armadilhas mortais, nas perseguições
dos desenhos animados.
Essa inconsequência produz
um efeito dúbio. Em teoria, é
bastante radical, mas na prática
fica difícil manter o interesse por
um texto em que o encadeamento só faz sentido como revelação da sua falta de sentido. Ao
contrário do teatro do absurdo
ou mesmo do surrealismo, o
teatro de Qorpo-Santo "não é
uma racionalização do irracional (...), mas o irracional em estado bruto", escreve Eudynir
Fraga no prefácio.
Se por um lado essa naturalidade irracional é uma força (como no caso de Bispo), por outro
só um discurso racional poderá
resgatá-la a posteriori como arte. Embora muito saudável, há
uma ambiguidade na defesa
dessa "autenticidade artística da
loucura", já que ela é produto de
uma apreensão racional posterior que, sem querer, põe em
questão o próprio lugar da arte.
No caso de Qorpo-Santo, por
exemplo, sua apreciação como
fenômeno precursor do surrealismo e do teatro do absurdo depende de um tanto de mistificação. A loucura de Qorpo-Santo é
natural e suas peças são a expressão direta da sua personalidade. Fora do contexto biográfico do autor encarado como fenômeno, elas se sustentam mal.
E, quando tais peças são postas num contexto literário mais
amplo -se comparadas a manifestações artísticas anteriores,
como o teatro de Jakob Lenz,
que também era considerado no
século anterior uma personalidade perturbada-, acabam ganhando contornos bem menos
inovadores.
Teatro Completo
Autor: Qorpo-Santo
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 39 (334 págs.)
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