São Paulo, sábado, 29 de dezembro de 2001

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LIVRO/LANÇAMENTO

O vazio da vida em tom menor


Sai no Brasil a novela minimalista "Carlota Fainberg", do aclamado autor espanhol Antonio Muñoz Molina


CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Qual o tamanho do vazio? Quantas páginas valem uma desilusão? Qual a dimensão de sentir-se exilado no cotidiano?
Levado por questões como essas, Antonio Muñoz Molina deixou temporariamente o reino dos calhamaços e aportou, em 1999, na estreita península das novelas.
Um dos grandes escritores espanhóis em atividade, ele circunscreveu alguns dos desajustes que o homem pode ter com o cotidiano nas limitadas 120 páginas de "Carlota Fainberg".
Dois anos depois, o curto relato feito pelo membro mais jovem da Real Academia de Letras da Espanha chega agora ao Brasil.
A obra minimalista, que a Companhia das Letras lança por aqui, parte de um enredo de horizontes curtos. Em um aeroporto em Pittsburgh (EUA), fechado por uma tempestade de neve, dois espanhóis se encontram: Claudio, professor de literatura que se dirige a Buenos Aires para dar uma conferência, e Abengoa, executivo que viaja a Miami.
Contido, o literato tenta mergulhar em um texto de Jorge Luis Borges. Mas, entre ele e o poema, havia a extroversão exagerada de Abengoa, que insiste em descrever uma história de amor vivida na Argentina com uma mulher chamada Carlota Fainberg.
"Era dessas pessoas que procuram corroborações materiais ou documentais para o que estão dizendo: se falam da mulher e dos filhos, mostram a foto que trazem na carteira", escreve Molina.
Do diálogo, brotam as frustrações e recalques do literato e a histeria oca do empresário. De quebra, pontadas irônicas no universo acadêmico norte-americano, que o escritor conhece como professor, e paródias aos pensadores pós-modernos, pós-estruturalistas, pós-outras coisas mais.
Leia a seguir trechos de entrevista que o ganhador duas vezes do prestigiado Prêmio Nacional de Narrativa, da Espanha, deu à Folha, de Nova York, onde estava vivendo desde o fatídico setembro de 2001.

Folha - Claudio, personagem de "Carlota Fainberg", diz que na vida as grandes turbulências, felizes ou desgraçadas, são muito menos frequentes do que sugerem os romances ou o cinema e que o que realmente conta na biografia de uma pessoa são as pequenas desilusões que ela teve. O sr. acha que "Carlota Fainberg" é um romance feito de pequenas desilusões?
Antonio Muñoz Molina -
"Carlota Fainberg" pretende ser um romance em tom menor e, portanto, os desenganos e desilusões que nele são contados, pequenos ou grandes, fazem alusão, de modo pudoroso, a coisas que no fundo podem ser mais amargas.
Claudio tem a ilusão de encontrar Carlota e de ter com ela uma experiência como a que o desconhecido que ele encontra no aeroporto teve.
Mas Claudio é um homem que está perdido, que havia aceitado uma vida ordenada e menor, longe de seu país e em um meio, o das universidades americanas, que costuma estar longe de qualquer outro lugar.

Folha - Assim como Claudio, o sr. teve várias experiências de lecionar em universidades americanas. O sr. acha esse ambiente tão vazio quanto seu personagem dá a entender que considera?
Muñoz Molina -
Nas universidades há muitas vezes gente admirável, com vontade de ensinar e aprender, e bibliotecas magníficas. Mas também há uma inflação absurda de palavreados teóricos e de "politicamente-correções" que ao final são uma chatice.
Vim muitas vezes dar aulas aqui em Nova York, mas nunca aguento ficar nisso por mais de quatro meses. Depois de ter estado na cidade quando o 11 de setembro aconteceu, o que projetou uma sombra muito escura sobre o futuro da cidade, talvez demore a voltar.

Folha - No livro são citados grandes intelectuais de verdade, como Umberto Eco, e outros aparentemente inventados, como Daniella Marshall Norris. O sr. também mistura cenários reais de Buenos Aires com lugares fictícios. Qual o significado dessas fusões de real e imaginário, presentes ainda em outras obras suas?
Muñoz Molina -
O romance, entre outras coisas, é um jogo. Mesclar nomes reais e fictícios é uma parte das mais gostosas do jogo. Quando alguém introduz elementos da realidade na ficção, o efeito é sempre um pouco perturbador, porque essa fronteira que parece que separa os dois reinos fica ambígua.
Eu me divirto muito com a invenção de nomes de professores e de estudos teóricos, mas estes podem chegar a ser muito mais retorcidos e absurdos na realidade do que em meu romance. A linguagem teórica pós-estruturalista das universidades é tão disparatada que, se é copiada literalmente, já parece bastante inverossímil.

Folha - Em sua opinião, quanto há de cada personagem no espanhol médio? É mais fácil topar com o donjuanismo barato de Abengoa ou com o complexo de inferioridade por ser espanhol de Claudio?
Muñoz Molina -
Os espanhóis, com respeito ao mundo exterior, podem ter complexos de inferioridade muito fortes, mas também serem muito arrogantes, segundo o termo de comparação escolhido. Mas, mais do que tipos nacionais, Claudio e Abengoa me parecem modelos humanos. Claudio é temeroso, assustadiço, incapaz de mover-se no mundo real, propenso à melancolia. Abengoa é dessas pessoas que se movem na realidade com uma soltura que sempre me parece ameaçadora. Em qualquer caso, a incerteza e a insegurança sempre me soam menos perigosas do que a arrogância.

Folha - O sr. começou a desenvolver o argumento de "Carlota Fainberg" quando lhe convidaram a escrever sobre o escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), autor de "Ilha do Tesouro". Até que ponto o sr. explorou a dicotomia entre Jekyll e Hyde, personagens de "O Médico e o Monstro", para criar a dupla Abengoa e Claudio?
Muñoz Molina -
Veja que curioso. Sendo eu tão leitor de Stevenson, não pensei nessa duplicidade enquanto escrevia o livro. A citação à "Ilha do Tesouro" era um mero ponto de partida, imposto pelo jornal que me pediu o texto. O tema ficou mais interessante quando passei a enxergá-lo por meio do poema de Borges (o texto "Blind Pew", de 1961).

Folha - Esse poema, epígrafe do livro, fala de um tesouro escondido em uma praia de ouro. Qual era essa arca que esperava enterrada por Abengoa e Claudio?
Muñoz Molina -
O tesouro pode ser várias coisas: uma mulher sonhada, que talvez não existe, uma certa forma de plenitude sexual, o país ou o passado que estão na memória de quem vive no desterro. Mas, segundo o poema de Borges, em seu final terrível, o tesouro poderia ser a morte também.


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