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São Paulo, segunda-feira, 29 de dezembro de 2003

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NELSON ASCHER

Ozimândias

"A dez estádios (cerca de dois quilômetros) das outras tumbas ergue-se o monumento de Ozimândias. "A inscrição que há nele diz: "Rei dos Reis eu sou, Ozimândias. Quem queira saber quão grande sou e onde jazo, que sobrepuje alguma de minhas obras"." É assim que Diodoro Sículo (90-21 a.C.) descreveu, em 30 a.C., na sua "Bibliotheca Historica", o templo mortuário do maior faraó da 19ª dinastia. O conjunto de estátuas situado em Tebas, na margem ocidental do Nilo (lado oposto ao de Luxor), foi adequadamente batizado de Ramesseum pelo pai da egiptologia, o arqueólogo e linguista francês Jean-François Champollion (1790-1832), pois se tratava do túmulo de Ramsés 2º, o Grande (1279-1213 a.C.). O nome que o historiador romano utilizara era, na verdade, a corruptela grega de Usermaat-Ra, um de seus prenomes.
Três milênios mais tarde, em dezembro de 1817, o poeta inglês Percy Bysshe Shelley (1792-1822) recebia um amigo, também poeta, Horace Smith (1779-1849) na sua casa em Great Marlow, Buckinghamshire, a noroeste de Londres. Ambos resolveram, numa competição amistosa, escrever sonetos sobre o mesmo tema inspirados sobretudo pela narrativa de Diodoro. Cada qual compôs o seu e, enquanto o de Smith -como, aliás, o próprio autor- já caiu no esquecimento, o de Shelley continua sendo um dos mais famosos de toda a literatura inglesa. Seu poema foi muito evocado recentemente, seja para, no contexto da transitoriedade dos impérios, profetizar a queda futura mas inevitável dos EUA, seja para comemorar a derrocada de autócratas megalômanos do Oriente Médio.
Shelley, que pertencia a uma família de aristocratas cuja origem remonta à conquista normanda (1066), apesar de criar uma obra volumosa que reúne romances e peças em verso, panfletos políticos e tratados sobre a poesia, celebrizou-se como um dos principais poetas ingleses do período romântico, um período no qual, graças a ele e seus companheiros ou rivais (Blake, Wordsworth, Coleridge, Byron, Keats), a poesia de seu país superava o que se escrevia no resto do Ocidente. Excelente poeta lírico, sua especialidade era, no entanto, o poema de média extensão, como "Adonais", magnífica elegia à morte de Keats. Esse gênero se combinava idealmente com sua propensão a desenvolver à vontade idéias complexas e, em geral, influenciadas pela vertente do neoplatonismo à qual ele, reconhecido enquanto o mais intelectual de todos os seus contemporâneos, havia aderido.
Nem por isso sua vida foi menos interessante que, por exemplo, a de Lord Byron. Aluno de Oxford, por redigir aos 17 anos com um colega um panfleto intitulado "A Necessidade do Ateísmo", ele foi expulso da augusta instituição. Após um casamento desaprovado (com retaliações econômicas) por sua família, devido à extração social inferior da consorte, e viajando incessamente pela Inglaterra e Irlanda, Shelley enamorou-se da filha de dois intelectuais da geração anterior, a escritora e pioneira do feminismo Mary Wollstonecraft (1759-97) e o filósofo e precursor do anarquismo William Goodwin (1756-1836). Com o tempo, o primeiro romance que Mary Wollstonecraft Shelley (1797-1851) escreveu (em 1818) acabaria rendendo-lhe um renome igual ou maior que o do marido. O título da obra em questão era "Frankenstein, ou o Moderno Prometeu".
O escândalo gerado pela ligação levou o casal a deixar, em 1814, as Ilhas Britânicas na companhia da irmã adotiva de Mary, Claire Clairmont (1798-1879), que se apaixonou pelo poeta e com quem este provavelmente teve um caso. Pouco depois de voltarem à Grã Bretanha, Claire seduziu Lord Byron que, insistentemente perseguido pela jovem decidiu, se bem que não fosse este seu único motivo, partir de vez para o continente. Ela então convenceu o casal a realizar uma nova viagem européia com o intuito de achar o amante foragido. Os Shelley foram e, em seguida, rompendo relações com Clairmont, fixaram-se na Itália. Em 1822, ano em que Champollion decifrou os hieróglifos da Pedra de Roseta, o poeta, antes mesmo de chegar aos 30, morreu quando seu barco naufragou na baía de Spezia.
"Ozimândias", escrito em pentâmetros iâmbicos, metro que corresponde ao nosso decassílabo, é um soneto rimado atipicamente e dividido em duas metades, uma expositiva, que toma o espaço de duas quadras, e outra, também expositiva, embora de modo diferente, que ocupa aquilo que seria o par de tercetos. Como seu assunto nada tem de novo, o que faz do poema uma obra-prima constitui, afinal, um mistério. Algo deste, porém, se explica pelo distanciamento com que o autor coloca na boca do viajante anônimo uma longa descrição e, ao arrematá-la, contrapondo à declaração taxativa do monarca a vacuidade arenosa do deserto, acrescenta-lhe apenas um grão microscópico, mas absolutamente certeiro, de ironia.


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