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NELSON ASCHER
Ozimândias
"A dez estádios (cerca de dois
quilômetros) das outras tumbas ergue-se o monumento de
Ozimândias. "A inscrição que há
nele diz: "Rei dos Reis eu sou, Ozimândias. Quem queira saber
quão grande sou e onde jazo, que
sobrepuje alguma de minhas
obras"." É assim que Diodoro Sículo (90-21 a.C.) descreveu, em 30
a.C., na sua "Bibliotheca Historica", o templo mortuário do maior
faraó da 19ª dinastia. O conjunto
de estátuas situado em Tebas, na
margem ocidental do Nilo (lado
oposto ao de Luxor), foi adequadamente batizado de Ramesseum
pelo pai da egiptologia, o arqueólogo e linguista francês Jean-François Champollion (1790-1832), pois se tratava do túmulo
de Ramsés 2º, o Grande (1279-1213 a.C.). O nome que o historiador romano utilizara era, na verdade, a corruptela grega de Usermaat-Ra, um de seus prenomes.
Três milênios mais tarde, em
dezembro de 1817, o poeta inglês
Percy Bysshe Shelley (1792-1822)
recebia um amigo, também poeta, Horace Smith (1779-1849) na
sua casa em Great Marlow, Buckinghamshire, a noroeste de Londres. Ambos resolveram, numa
competição amistosa, escrever sonetos sobre o mesmo tema inspirados sobretudo pela narrativa de
Diodoro. Cada qual compôs o seu
e, enquanto o de Smith -como,
aliás, o próprio autor- já caiu no
esquecimento, o de Shelley continua sendo um dos mais famosos
de toda a literatura inglesa. Seu
poema foi muito evocado recentemente, seja para, no contexto da
transitoriedade dos impérios,
profetizar a queda futura mas
inevitável dos EUA, seja para comemorar a derrocada de autócratas megalômanos do Oriente
Médio.
Shelley, que pertencia a uma família de aristocratas cuja origem
remonta à conquista normanda
(1066), apesar de criar uma obra
volumosa que reúne romances e
peças em verso, panfletos políticos
e tratados sobre a poesia, celebrizou-se como um dos principais
poetas ingleses do período romântico, um período no qual,
graças a ele e seus companheiros
ou rivais (Blake, Wordsworth,
Coleridge, Byron, Keats), a poesia
de seu país superava o que se escrevia no resto do Ocidente. Excelente poeta lírico, sua especialidade era, no entanto, o poema de
média extensão, como "Adonais",
magnífica elegia à morte de
Keats. Esse gênero se combinava
idealmente com sua propensão a
desenvolver à vontade idéias
complexas e, em geral, influenciadas pela vertente do neoplatonismo à qual ele, reconhecido enquanto o mais intelectual de todos os seus contemporâneos, havia aderido.
Nem por isso sua vida foi menos
interessante que, por exemplo, a
de Lord Byron. Aluno de Oxford,
por redigir aos 17 anos com um
colega um panfleto intitulado "A
Necessidade do Ateísmo", ele foi
expulso da augusta instituição.
Após um casamento desaprovado
(com retaliações econômicas) por
sua família, devido à extração social inferior da consorte, e viajando incessamente pela Inglaterra e
Irlanda, Shelley enamorou-se da
filha de dois intelectuais da geração anterior, a escritora e pioneira do feminismo Mary Wollstonecraft (1759-97) e o filósofo e precursor do anarquismo William
Goodwin (1756-1836). Com o
tempo, o primeiro romance que
Mary Wollstonecraft Shelley
(1797-1851) escreveu (em 1818)
acabaria rendendo-lhe um renome igual ou maior que o do marido. O título da obra em questão
era "Frankenstein, ou o Moderno
Prometeu".
O escândalo gerado pela ligação
levou o casal a deixar, em 1814, as
Ilhas Britânicas na companhia
da irmã adotiva de Mary, Claire
Clairmont (1798-1879), que se
apaixonou pelo poeta e com
quem este provavelmente teve um
caso. Pouco depois de voltarem à
Grã Bretanha, Claire seduziu
Lord Byron que, insistentemente
perseguido pela jovem decidiu, se
bem que não fosse este seu único
motivo, partir de vez para o continente. Ela então convenceu o casal a realizar uma nova viagem
européia com o intuito de achar o
amante foragido. Os Shelley foram e, em seguida, rompendo relações com Clairmont, fixaram-se
na Itália. Em 1822, ano em que
Champollion decifrou os hieróglifos da Pedra de Roseta, o poeta,
antes mesmo de chegar aos 30,
morreu quando seu barco naufragou na baía de Spezia.
"Ozimândias", escrito em pentâmetros iâmbicos, metro que
corresponde ao nosso decassílabo,
é um soneto rimado atipicamente
e dividido em duas metades, uma
expositiva, que toma o espaço de
duas quadras, e outra, também
expositiva, embora de modo diferente, que ocupa aquilo que seria
o par de tercetos. Como seu assunto nada tem de novo, o que faz
do poema uma obra-prima constitui, afinal, um mistério. Algo
deste, porém, se explica pelo distanciamento com que o autor coloca na boca do viajante anônimo uma longa descrição e, ao arrematá-la, contrapondo à declaração taxativa do monarca a vacuidade arenosa do deserto,
acrescenta-lhe apenas um grão
microscópico, mas absolutamente
certeiro, de ironia.
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