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ARTIGO
Escritora se transformou em inconformista prêt-à-porter
LUCIANO TRIGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Susan Sontag seguramente
será lembrada como "a consciência crítica da América", como
intelectual independente e engajada, como crítica severa dos reacionarismos de direita e esquerda.
Tudo isso é verdade. A ensaísta
e romancista americana tinha
uma característica cada vez mais
rara entre os intelectuais sérios: o
gosto pela polêmica, que a levou a
meter o bedelho em debates que
mobilizaram a opinião pública
nas últimas quatro décadas.
Ela deu opiniões controversas
sobre assuntos tão diferentes
quanto a estética fascista, a Aids e
a literatura pornográfica. Esteve
na Guerra do Vietnã, como correspondente, e décadas mais tarde nos Bálcãs, promovendo uma
encenação de "Esperando Godot"
na Sarajevo em ruínas. Atacou a
forma como a mídia de seu país
tratou os atentados de 11 de Setembro e, filha de judeus, criticou
a ocupação israelense dos territórios palestinos.
Sontag foi também uma espécie
de embaixadora informal da cultura européia na atmosfera intelectual rarefeita dos Estados Unidos, transitando entre o jornalismo e o ensaio, com sucesso variado. Como tal, ela teve um papel de
destaque sobretudo nos anos 60 e
70, quando, tirando partido da
alienação e desinformação gerais
do americano médio sobre o Velho Mundo, escreveu ensaios que
apresentavam Walter Benjamin,
Elias Canetti, E.M. Cioran, Roland
Barthes e Jean-Luc Godard, então
"novidades" na América.
Integrando o público americano ao debate sobre a modernidade literária, estética e cinematográfica, ela acabou provocando
reações no próprio mercado europeu das idéias. Sempre atenta a
tesouros ignorados em seu país,
ela também escreveu um ensaio
sobre Machado de Assis, que repercutiu mais aqui do que lá.
Livros como "A Vontade Radical" e "Contra a Interpretação"
reuniram textos que teorizavam
sobre a cultura cotidiana (como
"Notas sobre o Camp") e abordavam temas como as minorias e a
sexualidade num estilo original e
ousado. Mas, em sua maioria, são
peças datadas, muito presas a
uma atitude contestatória e a uma
percepção de mundo que a história tratou de esmagar.
Menos efêmeros foram seus ensaios sobre o câncer, do qual ela
própria foi vítima ("A Doença como Metáfora") e sobre fotografia
("Ensaio sobre a Fotografia"), tema ao qual voltou num texto recente sobre a percepção do horror
e a fotografia de guerra ("Olhando a Dor Alheia") -no qual analisa o consumo da violência e das
atrocidades de um conflito armado como mero espetáculo, que
não provoca a cumplicidade do
espectador.
Talvez seja esta a característica
mais importante da obra de Sontag: exigir que o leitor tome partido, lutando assim contra o processo, orquestrado ou não, de emburrecimento e infantilização do
ser humano. Cobrou de Gabriel
García Márquez que se manifestasse sobre as execuções em Cuba
e classificou de besteira o discurso
de Bush de "bem contra o mal".
Numa de suas últimas aparições
públicas, em Frankfurt, no ano
passado, quando recebeu o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro
Alemão, ela aproveitou a ocasião
para atacar, previsivelmente, a
política do presidente Bush.
Bonita, ambiguamente homossexual e duplamente vaidosa, como intelectual e como mulher, de
certa forma Susan Sontag acabou
se transformando numa autora
prêt-à-porter para aquela fatia do
público sempre ávida por uma
voz inteligente que critique o establishment. Quando esteve no Rio
e fez uma palestra na Biblioteca
Nacional, em 2002, foi consumida
pela platéia como mais um produto da cultura do espetáculo e da
celebridade: a encarnação da
"mulher inteligente", que não hesitou em bater boca com um convidado ao se sentir contestada,
nem em conquistar aplausos fáceis ao criticar a reserva de lugares
no auditório, enquanto do lado de
fora centenas de pessoas se espremiam na fila para cultuá-la.
Hoje quem vem ocupando esse
espaço de porta-voz do inconformismo é o gorducho cineasta Michael Moore. Eu preferia Susan
Sontag, mais sutil e elegante. Cada
época tem a contracultura que
merece.
Luciano Trigo é jornalista e escritor
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