São Paulo, quarta-feira, 29 de dezembro de 2004

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ARTIGO

Escritora se transformou em inconformista prêt-à-porter

LUCIANO TRIGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Susan Sontag seguramente será lembrada como "a consciência crítica da América", como intelectual independente e engajada, como crítica severa dos reacionarismos de direita e esquerda.
Tudo isso é verdade. A ensaísta e romancista americana tinha uma característica cada vez mais rara entre os intelectuais sérios: o gosto pela polêmica, que a levou a meter o bedelho em debates que mobilizaram a opinião pública nas últimas quatro décadas.
Ela deu opiniões controversas sobre assuntos tão diferentes quanto a estética fascista, a Aids e a literatura pornográfica. Esteve na Guerra do Vietnã, como correspondente, e décadas mais tarde nos Bálcãs, promovendo uma encenação de "Esperando Godot" na Sarajevo em ruínas. Atacou a forma como a mídia de seu país tratou os atentados de 11 de Setembro e, filha de judeus, criticou a ocupação israelense dos territórios palestinos.
Sontag foi também uma espécie de embaixadora informal da cultura européia na atmosfera intelectual rarefeita dos Estados Unidos, transitando entre o jornalismo e o ensaio, com sucesso variado. Como tal, ela teve um papel de destaque sobretudo nos anos 60 e 70, quando, tirando partido da alienação e desinformação gerais do americano médio sobre o Velho Mundo, escreveu ensaios que apresentavam Walter Benjamin, Elias Canetti, E.M. Cioran, Roland Barthes e Jean-Luc Godard, então "novidades" na América.
Integrando o público americano ao debate sobre a modernidade literária, estética e cinematográfica, ela acabou provocando reações no próprio mercado europeu das idéias. Sempre atenta a tesouros ignorados em seu país, ela também escreveu um ensaio sobre Machado de Assis, que repercutiu mais aqui do que lá.
Livros como "A Vontade Radical" e "Contra a Interpretação" reuniram textos que teorizavam sobre a cultura cotidiana (como "Notas sobre o Camp") e abordavam temas como as minorias e a sexualidade num estilo original e ousado. Mas, em sua maioria, são peças datadas, muito presas a uma atitude contestatória e a uma percepção de mundo que a história tratou de esmagar.
Menos efêmeros foram seus ensaios sobre o câncer, do qual ela própria foi vítima ("A Doença como Metáfora") e sobre fotografia ("Ensaio sobre a Fotografia"), tema ao qual voltou num texto recente sobre a percepção do horror e a fotografia de guerra ("Olhando a Dor Alheia") -no qual analisa o consumo da violência e das atrocidades de um conflito armado como mero espetáculo, que não provoca a cumplicidade do espectador.
Talvez seja esta a característica mais importante da obra de Sontag: exigir que o leitor tome partido, lutando assim contra o processo, orquestrado ou não, de emburrecimento e infantilização do ser humano. Cobrou de Gabriel García Márquez que se manifestasse sobre as execuções em Cuba e classificou de besteira o discurso de Bush de "bem contra o mal". Numa de suas últimas aparições públicas, em Frankfurt, no ano passado, quando recebeu o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão, ela aproveitou a ocasião para atacar, previsivelmente, a política do presidente Bush.
Bonita, ambiguamente homossexual e duplamente vaidosa, como intelectual e como mulher, de certa forma Susan Sontag acabou se transformando numa autora prêt-à-porter para aquela fatia do público sempre ávida por uma voz inteligente que critique o establishment. Quando esteve no Rio e fez uma palestra na Biblioteca Nacional, em 2002, foi consumida pela platéia como mais um produto da cultura do espetáculo e da celebridade: a encarnação da "mulher inteligente", que não hesitou em bater boca com um convidado ao se sentir contestada, nem em conquistar aplausos fáceis ao criticar a reserva de lugares no auditório, enquanto do lado de fora centenas de pessoas se espremiam na fila para cultuá-la.
Hoje quem vem ocupando esse espaço de porta-voz do inconformismo é o gorducho cineasta Michael Moore. Eu preferia Susan Sontag, mais sutil e elegante. Cada época tem a contracultura que merece.


Luciano Trigo é jornalista e escritor


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