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Autora vivia entre ativismo e literatura
Intelectual, que adotou posições controversas no 11 de Setembro e na Guerra do Vietnã, ambicionava se consagrar como ficcionista
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA
Susan Sontag, cujo melhor
livro de ensaios se chama
"Sob o Signo de Saturno", morreu, aos 71 anos, sob o signo da infâmia. Se tal infâmia não faz justiça a seu trabalho sério, tampouco
se pode dizer que tenha sido imerecida. Afinal, menos de uma semana após os ataques de 11 de setembro de 2001, quando o que
restara de 3.000 de seus concidadãos nem tinha começado a esfriar, ela achou de bom tom, num
artigo algo vago, ambíguo e, sobretudo, oblíquo publicado pela
"New Yorker", condenar não tanto os fanáticos religiosos que perpetraram o massacre, quanto a
política externa de seu país. E,
sem se importar muito com os
sentimentos dos parentes e amigos das vítimas, preferiu ademais
defender a reputação dos assassinos da acusação, que lhe parecia
injusta, de "covardes".
Houve quem, naqueles dias, assumisse posições piores, mas dessas mentes meio robóticas, meio
pavlovianas, ninguém esperava
nada diferente. Talvez seja pelos
méritos que a escritora acumulou
ao longo da carreira que sua reação chocou um público maior e
várias vozes da blogosfera instituíram logo um "prêmio Susan
Sontag" que vem, desde então,
sendo simbolicamente "conferido" aos norte-americanos mais
dispostos a atribuir a seu governo
e/ou compatriotas todos os males
que afligem o planeta.
Tal "faux pas" político, porém
(nem sequer seu primeiro), não
lhe desmerece a trajetória, uma
trajetória rica, variada e igualmente cheia de altos e baixos. Se,
durante a Guerra do Vietnã, ela
visitou Hanói para manifestar sua
solidariedade à ditadura local, ela
se esqueceu de usar sua influência
para interceder depois, junto ao
governo norte-vietnamita, em
prol dos milhões de prisioneiros
políticos e refugiados que a vitória
deste criou. Por outro lado, seu
ativismo nos anos da Guerra da
Bósnia pesou na decisão americana de, contrapondo-se à indiferença e irresponsabilidade européias, intervir para interromper a
carnificina. (Vale a pena observar
que seu filho, o ensaísta David
Rieff, desempenhou um papel
igualmente honrado nessa causa.)
A lógica da fama tornou inevitável que Sontag se destacasse antes
como ativista do que como autora. Infelizmente, seu ativismo é o
que ela possuía de menos pessoal.
Suas posições políticas, que derivavam não de um pensamento
profundo, mas do espírito de rebanho que caracteriza o grosso da
intelectualidade contemporânea,
congelaram-se na década de 60 e
foram sempre tão convencionais
quanto possível. O que ela tinha a
dizer era apenas uma versão mimeografada e morna do catecismo da "Nova Esquerda" (New
Left) que, por sua vez, não passava de uma repetição degradada da
vulgata esquerdista dos anos 20/
30.
Embora, proporcionalmente, o
impacto de seus escritos especializados tenha sido menor, estes são
sem dúvida mais duráveis. Sontag, ao que tudo indica, ambicionava se consagrar como ficcionista. No entanto, é como leitora que
seu nome vai perdurar. Como leitora ativa, bem entendido, ou seja,
como crítica literária. Esta, como
se sabe, quase nunca é uma carreira glamourosa e, para uma mulher cuja beleza rivalizava com
sua inteligência, não deve ter sido
fácil admitir que seu verdadeiro
talento a dirigia para um afazer
longe do centro do palco. Sua paixão pela criação literária, sua autêntica admiração por autores e
obras bastaram, todavia, para que
ela jamais abandonasse a atividade em questão.
Não que seus textos se aproximassem do nível daqueles escritos por um Erich Auerbach, Paul
Valéry, Roman Jakobson ou Harold Bloom. Ainda assim, eles exibiam duas virtudes raras: a clareza e a curiosidade. A americana,
mais do que "scholar", era uma
divulgadora de nível superior
que, elegantemente, ajudava o
público leigo a se familiarizar com
escritores difíceis ou obscuros,
bem como com idéias complexas.
Seus ensaios sobre Walter Benjamin, Elias Canetti, Artaud, Roland Barthes e outros são exemplos acabados do alto jornalismo
literário. Ela colaborou com o desenvolvimento de uma abordagem refinada mas não preconceituosa da cultural popular ou de
massas e os volumes que publicou
sobre a fotografia e sobre as doenças (um desencadeado pelo câncer de que sofreu 30 anos atrás, o
segundo pela epidemia da AIDS),
se bem que contenham muito de
discutível, são informados e prazerosamente legíveis.
Quanto a sua outra virtude, a
curiosidade, esta a manteve atenta seja ao que surgia de interessante, seja ao que havia sido injustamente ignorado. Ela promoveu
gente de primeira, como o iugoslavo Danilo Kis e o húngaro Peter
Nadas, e redigiu belas introduções às edições em inglês de Juan
Rulfo e Machado de Assis. Ao
contrário do que acontece tão
amiúde, seu relativo insucesso literário não a amargurou a ponto
de desinteressá-la das qualidades
alheias. Sontag foi, enfim, uma intelectual cuja estima crescerá à
medida que sua fama diminua e
sua obra, despida das polêmicas
circunstanciais, atinja o público
adequado.
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