São Paulo, quarta-feira, 29 de dezembro de 2004

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Autora vivia entre ativismo e literatura

Intelectual, que adotou posições controversas no 11 de Setembro e na Guerra do Vietnã, ambicionava se consagrar como ficcionista

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA

Susan Sontag, cujo melhor livro de ensaios se chama "Sob o Signo de Saturno", morreu, aos 71 anos, sob o signo da infâmia. Se tal infâmia não faz justiça a seu trabalho sério, tampouco se pode dizer que tenha sido imerecida. Afinal, menos de uma semana após os ataques de 11 de setembro de 2001, quando o que restara de 3.000 de seus concidadãos nem tinha começado a esfriar, ela achou de bom tom, num artigo algo vago, ambíguo e, sobretudo, oblíquo publicado pela "New Yorker", condenar não tanto os fanáticos religiosos que perpetraram o massacre, quanto a política externa de seu país. E, sem se importar muito com os sentimentos dos parentes e amigos das vítimas, preferiu ademais defender a reputação dos assassinos da acusação, que lhe parecia injusta, de "covardes".
Houve quem, naqueles dias, assumisse posições piores, mas dessas mentes meio robóticas, meio pavlovianas, ninguém esperava nada diferente. Talvez seja pelos méritos que a escritora acumulou ao longo da carreira que sua reação chocou um público maior e várias vozes da blogosfera instituíram logo um "prêmio Susan Sontag" que vem, desde então, sendo simbolicamente "conferido" aos norte-americanos mais dispostos a atribuir a seu governo e/ou compatriotas todos os males que afligem o planeta.
Tal "faux pas" político, porém (nem sequer seu primeiro), não lhe desmerece a trajetória, uma trajetória rica, variada e igualmente cheia de altos e baixos. Se, durante a Guerra do Vietnã, ela visitou Hanói para manifestar sua solidariedade à ditadura local, ela se esqueceu de usar sua influência para interceder depois, junto ao governo norte-vietnamita, em prol dos milhões de prisioneiros políticos e refugiados que a vitória deste criou. Por outro lado, seu ativismo nos anos da Guerra da Bósnia pesou na decisão americana de, contrapondo-se à indiferença e irresponsabilidade européias, intervir para interromper a carnificina. (Vale a pena observar que seu filho, o ensaísta David Rieff, desempenhou um papel igualmente honrado nessa causa.)
A lógica da fama tornou inevitável que Sontag se destacasse antes como ativista do que como autora. Infelizmente, seu ativismo é o que ela possuía de menos pessoal. Suas posições políticas, que derivavam não de um pensamento profundo, mas do espírito de rebanho que caracteriza o grosso da intelectualidade contemporânea, congelaram-se na década de 60 e foram sempre tão convencionais quanto possível. O que ela tinha a dizer era apenas uma versão mimeografada e morna do catecismo da "Nova Esquerda" (New Left) que, por sua vez, não passava de uma repetição degradada da vulgata esquerdista dos anos 20/ 30.
Embora, proporcionalmente, o impacto de seus escritos especializados tenha sido menor, estes são sem dúvida mais duráveis. Sontag, ao que tudo indica, ambicionava se consagrar como ficcionista. No entanto, é como leitora que seu nome vai perdurar. Como leitora ativa, bem entendido, ou seja, como crítica literária. Esta, como se sabe, quase nunca é uma carreira glamourosa e, para uma mulher cuja beleza rivalizava com sua inteligência, não deve ter sido fácil admitir que seu verdadeiro talento a dirigia para um afazer longe do centro do palco. Sua paixão pela criação literária, sua autêntica admiração por autores e obras bastaram, todavia, para que ela jamais abandonasse a atividade em questão.
Não que seus textos se aproximassem do nível daqueles escritos por um Erich Auerbach, Paul Valéry, Roman Jakobson ou Harold Bloom. Ainda assim, eles exibiam duas virtudes raras: a clareza e a curiosidade. A americana, mais do que "scholar", era uma divulgadora de nível superior que, elegantemente, ajudava o público leigo a se familiarizar com escritores difíceis ou obscuros, bem como com idéias complexas.
Seus ensaios sobre Walter Benjamin, Elias Canetti, Artaud, Roland Barthes e outros são exemplos acabados do alto jornalismo literário. Ela colaborou com o desenvolvimento de uma abordagem refinada mas não preconceituosa da cultural popular ou de massas e os volumes que publicou sobre a fotografia e sobre as doenças (um desencadeado pelo câncer de que sofreu 30 anos atrás, o segundo pela epidemia da AIDS), se bem que contenham muito de discutível, são informados e prazerosamente legíveis.
Quanto a sua outra virtude, a curiosidade, esta a manteve atenta seja ao que surgia de interessante, seja ao que havia sido injustamente ignorado. Ela promoveu gente de primeira, como o iugoslavo Danilo Kis e o húngaro Peter Nadas, e redigiu belas introduções às edições em inglês de Juan Rulfo e Machado de Assis. Ao contrário do que acontece tão amiúde, seu relativo insucesso literário não a amargurou a ponto de desinteressá-la das qualidades alheias. Sontag foi, enfim, uma intelectual cuja estima crescerá à medida que sua fama diminua e sua obra, despida das polêmicas circunstanciais, atinja o público adequado.


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