São Paulo, quarta-feira, 30 de janeiro de 2002

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Às vésperas do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, chega ao Brasil coleção de livros que refletem o pensamento da "esquerda anticapitalista"

Caos organizado

Reuters
Homem quebra vitrine em Gênova (Itália) durante encontro de cúpula do G-8


DIEGO ASSIS
DA REDAÇÃO

O grito partiu de Chiapas, foi ouvido em Genebra, seguiu a Colônia para desembocar em Seattle. Em meio à segunda edição do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, ele volta a ecoar amanhã no Brasil. Camponeses, artistas, intelectuais, anarquistas de um lado; FMI, OMC, imprensa, polícia do outro.
Esse caleidoscópio de tendências e alvos da proclamada "esquerda anticapitalista" dá a tônica dos quatro livros até agora publicados na Coleção Baderna, da Conrad Editora. No prelo, já estão outros três: "Urgência das Ruas", compilação de artigos e entrevistas de grupos de Reclaim the Streets e Black Block; "Situacionistas - Teoria e Prática da Revolução", que reúne pérolas do movimento estudantil dos anos 60; e "Q", best-seller de Luther Blissett, autor de "Guerrilha Psíquica" (da coleção) e de um infindável número de trotes em repórteres e editores da mídia italiana.
"O Luther Blissett italiano; porque já tem o alemão, o irlandês, até no Brasil tem gente querendo assinar Luther Blissett", afirma Rogério de Campos, diretor editorial da Conrad, que diz só ter conseguido negociar os direitos de reprodução do autor para o Brasil depois de admitir uma cláusula que obrigaria a editora a processar qualquer um que impedisse a livre reprodução da obra. Chame de "anticopyright" ou, se preferir, "copyleft" (literalmente, cópia autorizada).
"É uma velha idéia anarquista contra as noções de propriedade privada, das quais a que mais incomoda hoje é a de propriedade intelectual", argumenta Jim Fleming, um dos organizadores do grupo de ativistas sediados no Brooklin (NY), Autonomedia.
"Concessionária" dos direitos de "Distúrbio Eletrônico", do grupo de artistas e hacktivistas Critical Art Ensemble e colaboradora da edição brasileira de "TAZ -°Zona Autônoma Temporária", de Hakim Bey, a Autonomedia tem publicados nos Estados Unidos mais de 300 livros, desde debates acadêmicos, passando por textos narrativos até graphic novels engajadas. A tecnologia, afirma Fleming, teria facilitado ainda mais a distribuição a custo zero de boa parte dessa "riqueza intelectual".

Baderna
"Os que participam de levantes invariavelmente notam seus aspectos festivos, mesmo em meio à luta armada, perigo e risco", escreve Bey. Quem acompanhou as notícias dos protestos em Seattle, Praga e Gênova -onde um manifestante, Carlo Giulliani, foi morto pela polícia italiana- certamente já ouviu falar dos Black Blocks, pequenos grupos de manifestantes mascarados que abandonam as vias pacíficas assim que avistam a primeira vidraça de uma loja do McDonald's intacta.
"Urgência das Ruas", que será lançado em fevereiro, é um conjunto de relatos e entrevistas sobre as ações desse e de outros grupos que pregam a "ocupação e alteração" dos ambientes públicos, cronologicamente organizado pelo brasileiro Ned Ludd, que não quis gravar entrevista e que, dificilmente, tem esse nome mesmo.
"O movimento antiglobalização, no Brasil, tem adotado deliberadamente uma posição de não-violência. Na hora, tem sempre alguns que se exaltam e acabam atraindo o confronto com os policiais", pondera o advogado Ruy Fernando, 29, que tem em sua lista quase 80 clientes presos na famosa manifestação estudantil de abril de 2001, na avenida Paulista.
No entanto, Ruy defende que os protestos de rua brasileiros precisam ser encarados de maneira diferente daqueles da Holanda, por exemplo, onde o cidadão tem direitos sobre as entidades e autoridades públicas, incluindo pichar, xingar e até um sugestivo "atirar esponjas molhadas" contra seus policiais. "No Brasil, isso é prisão na certa."
Na verdade, o que parece importar a todos esses movimentos são justamente as divergências, as idéias fragmentárias, as ações pontuais e as globais. Usar a internet como arma ou desprezá-la por completo. Provocar a desordem ou promover vigílias de paz e amor. O novo pensamento da esquerda da esquerda, para citar Bordieu -um dos principais críticos da "mundialização do capital", morto na última semana-, só pode ser extraído da confusão e da velocidade dos acontecimentos. Resta à Conrad botar uma ordem no caos.

O novo espontaneísmo
"Estamos vendo uma clara mudança de modelos de atuação. Os canais tradicionais de fazer política estão esgotados e, nesse espaço, entram as manifestações espontâneas de rua e a força da internet como uma nova arma para esses grupos", afirma o professor Carlos Marcos Avighi, do Departamento de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP. "Se esse "espontaneísmo" era antes criticado pelos partidos de esquerda e sindicatos, hoje ele é bem-vindo e tem dado resultados. Para o bem e para o mal: não se pode levar a sério tudo o que aparece", destaca.
A professora de história contemporânea da USP Maria Aparecida de Aquino concorda. "Não se pode enquadrar essas novas tendências em um único pensamento, marxismo, socialismo ou anarquismo. A meu ver, o que os diferencia é que não há mais uma coordenação clara dessas manifestações. É, de certa forma, a mesma bandeira antiautoritarismo dos protestos de 68, porém sem retomar refrões dos movimentos anteriores", diz. "Eles descartam o caráter revolucionário da esquerda tradicional."


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