São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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Gang of Four sai das cinzas e ressuscita o pós-punk

JON PARELES
DO "NEW YORK TIMES", EM LONDRES

Clank. Clank. Clank. Jon King, vocalista do Gang of Four, bate com uma haste metálica contra um forno de microondas que encontrou em um posto de reciclagem. Cada pancada aumenta o amassado; lascas de tinta voam.
Não se trata de petulância, mas da introdução de "He'd Send in the Army", sombria e quebradiça canção lançada em "Solid Gold", de 1981. Teimosamente lenta, com a bateria de Hugo Burnham e o baixo de Dave Allen tocando de modo intermitente e a guitarra estridente de Andy Gill ocupando os espaços vazios, é uma das canções mais impiedosas do grupo.
Na noite do dia 21, num pub lotado no decrépito bairro de New Cross, zona sul de Londres, cerca de 200 fãs modernos do punk receberam a canção com curiosidade, que logo se transformou em gritos de aprovação. Os quatro músicos, todos próximos dos 50 anos, faziam seu primeiro show como grupo desde 1981.
Eles imediatamente retomaram a meticulosa ferocidade que fez do Gang of Four uma das mais influentes entre as bandas pós-punk. A velha mistura entre o cerebral e o visceral era evidente, e a intensidade era palpável.
Agora é o momento perfeito para que o Gang of Four reapareça. O som do pós-punk -o rock underground inteligente que seguiu a iconoclastia, o barulho e a excentricidade das bandas punks pioneiras, no final dos anos 70 e começo dos 80- surpreendeu e voltou a atrair ouvintes. Ainda que poucas bandas pós-punk tenham chegado aos 40 primeiros postos das paradas de sucesso, deixaram sua marca (leia abaixo).
E o Gang of Four vai sair em turnê. "O objetivo é sermos incrivelmente intensos, como éramos naquela época", disse Allen. "O que fazemos é deixar a platéia de língua de fora. Se não formos capazes disso, teremos perdido nossa autoridade. Dizer que somos 23 anos mais velhos não é desculpa."
Na semana passada, o Gang of Four começou uma série de cinco shows em clubes com capacidade para 2.000 pessoas no Reino Unido e entra em turnê nos EUA no Coachella Valley Music Festival, na Califórnia, que acontece entre 30 de abril e 1º de maio.
Formado em 1977, o Gang of Four criou o que seria conhecido como punk-funk. A banda foi concebida por Gill e King, colegas desde o segundo grau e estudantes de arte na Universidade de Leeds. Eles visitaram Nova York entre 1976 e 1977, quando o punk, o primitivismo e o art rock conspiravam no CBGB. "Isso sugeria a possibilidade de que qualquer coisa poderia acontecer", disse Gill. (O nome do grupo vem dos líderes radicais chineses que fomentaram a revolução cultural.)
A precisão se misturava com a anarquia por intermédio da guitarra de Gill, que usava ritmos funk ocasionalmente, mas escapava para linhas dissonantes, harmonias vítreas e rugidos de distorção. "Superficialmente, parecíamos uma banda de rock", diz Allen. "Mas a idéia era colocar a coisa toda de cabeça para baixo."
As letras do Gang of Four eram igualmente ásperas. Ainda que a banda tenha sido rotulada como política, poucas canções eram protestos diretos. Elas eram amargas e analíticas, influenciadas pelas teorias de Marx, Adorno, Baudrillard e Godard, e a banda estava determinada a esvaziar o romantismo pop, consciente de que as pessoas eram manipuladas pelo poder, marketing e mídia.
Allen deixou a banda em 1981, exausto com as turnês, e disse que não teve contato com King até 2004. Burnham foi demitido em 1983. King e Gill mantiveram o nome Gang of Four para álbuns mais convencionais lançados ocasionalmente, até 1995. Mas a formação agora reunida é a que gravou o inesquecível "Entertainment!", disco de estréia da banda, em 1979, bem como "Solid Gold". Burnham diz, satisfeito, que "são os discos que importam".
O grupo não planeja compor novas canções. Mas gravou um novo disco duplo que será vendido on-line e nos shows da turnê. O repertório inclui 15 das velhas canções gravadas com equipamento melhor e um segundo CD de remixes produzidos por velhos fãs como Franz Ferdinand, Massive Attack e Futureheads.
Gill, em tom de piada, comparou a diferença entre as velhas e novas versões das faixas à diferença entre Giotto e Michelangelo: "O primitivismo esbelto do texto original ante à versão musculosa, fortona e luxuriante de 2005".


Tradução Paulo Migliacci

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