São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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FERREIRA GULLAR

Zoologia fantástica

Como disse aqui, sou um contumaz inventor de teorias -algumas até foram levadas a sério como a Teoria do Não-Objeto; outras, injustamente desconsideradas. Nem por isso desisto, tanto que uma de minhas teorias mais recentes é a de que uma das funções do artista é criar o maravilhoso (ou o surpreendente), pela razão simples de que não encontramos no mundo maravilhas em quantidade suficiente para satisfazer a fome de maravilha que habita as pessoas.
Lembro o exemplo dos reis europeus que colecionavam animais espantosos como girafas, elefantes, rinocerontes, camelos... Se o leitor me permitir, contarei um fato ocorrido comigo mesmo: quando menino, achei numa praia um pequeno búzio colorido que me deslumbrou; então saí à procura de outros búzios igualmente lindos, mas nenhum mais encontrei. Búzios lindos e animais extravagantes não podemos criá-los, mas poemas, sinfonias, quadros, esculturas, sim. Logo, pode-se dizer que cada obra que o artista cria aumenta a quantidade de coisas maravilhosas existentes no planeta.
Lembrei-me dessa teoria ao topar na minha estante com um livro de Jorge Luis Borges intitulado "Manual de Zoologia Fantástica", editado em 1957, em cujo prefácio faz ele uma afirmação que tem a ver com o tal fascínio dos reis por animais exóticos. Escreve que um garoto, levado pela primeira vez a um jardim zoológico, vê animais que nunca vira, como jaguares, abutres, bisões e, em vez de ficar assustado, encanta-se com eles. Borges parte daí para falar de outro zoológico, o das mitologias, habitado por animais inventados, como esfinges, grifos, centauros e dragões.
Não resisto à tentação de falar desses seres, alguns dos quais vocês já conhecem, como a ave fênix, que renasce das cinzas. O que eu não sabia é que, segundo a tradição, ela dura exatos 1.461 anos; como, segundo os antigos, cumprido o ciclo astronômico, a história universal se repetiria em todos os seus detalhes, a ave fênix viria a ser um espelho ou uma imagem do universo.
Mas, afora o centauro (tido como o mais harmonioso animal da zoologia fantástica), o grifo, o dragão, a sereia, existe o cem-cabeças, que é um peixe estranhíssimo chamado também kapila. Uma biografia chinesa de Buda conta ter ele encontrado uns pescadores que, à custa de muito esforço, tiraram do mar um peixe enorme, com uma cabeça de macaco, outra de cão, outra de cavalo, outra de raposa, outra de porco, outra de tigre e assim até o número cem. Buda perguntou ao peixe: "-Não és kapila?". "-Sou kapila", responderam as cem cabeças antes de morrer.
Kapila teria sido um monge que a todos superara no conhecimento dos textos sagrados e, quando morreu, se transformou naquele peixe.
Não é menos curiosa a história dos "animais esféricos", que, segundo Platão, teriam inspirado em Deus a forma esférica do mundo. Seguindo essa linha, mais de 500 anos depois -conforme informa Borges-, em Alexandria, Orígenes ensinou que os bem-aventurados ressuscitavam em forma de esfera e entravam rodando na eternidade, o que, mal comparando, me lembra a ala das baianas da Portela, que também entra rodando, senão na eternidade, na avenida...
De todos esses animais fantásticos, não tenho dúvida de que os da predileção de Borges são os que chama de "animais dos espelhos". Conta que, na época do imperador Amarelo, o mundo dos homens e o dos espelhos não eram, como agora, incomunicáveis e, além do mais, os seres de um e de outro mundo não coincidiam nem nas formas nem nas cores. Passava-se de um mundo para o outro sem problema.
Até que, certa noite, o pessoal do espelho invadiu a Terra, travando-se uma sangrenta batalha, vencida pelas tropas do imperador Amarelo, que rechaçou os invasores e os encarcerou nos espelhos, impondo-lhes a tarefa de repetir todos os atos dos homens. Mas dia chegará em que aqueles oprimidos se libertarão e reunirão forças para romper as barreiras do vidro e do metal. E há quem diga que, antes da invasão, ouviremos, vindo do fundo dos espelhos, o rumor das armas...
Parece uma história inventada por Jorge Luis Borges, que sempre foi invocado com espelhos, como o demonstra o célebre soneto a que deu o título de "Ao Espelho" e em que diz : "Por que duplicas, misterioso irmão, / O menor movimento desta mão?" e termina assim: "Quando eu morrer, copiarás a outro, / Depois a outro, a outro, a outro, a outro...".
Mas o animal, a meu ver, mais fascinante dessa zoologia inventada é o a bao a qu, que habita a escadaria da Torre da Vitória, em Chitor, donde se vê a mais bela paisagem do mundo. Vive em estado letárgico, no primeiro degrau, e só ganha vida consciente quando alguém galga a escadaria; ele então se coloca nos calcanhares do visitante e sobe prendendo-se nas bordas dos degraus curvos e gastos pelos pés de gerações de peregrinos. E assim vai ele ganhando forma e cor, mas só alcança sua forma perfeita no último degrau, quando quem sobe é um ser elevado espiritualmente. Quando não consegue se formar totalmente, o a bao a qu sofre, e sua queixa é um rumor quase imperceptível, como o roçar da seda. Sua volta à vida é sempre muito breve, pois, quando o peregrino desce, ele cai para o degrau inicial, onde, já apagado e semelhante a uma lâmina de vagos contornos, espera pelo próximo visitante.

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