São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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CRÍTICA

Um mundo de nadas bem empacotados

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Às vezes, talvez fosse o caso de parar de besteira e esquecer esse negócio de dramaturgia, jornalismo, pedagogia, cultura, arte, qualidade, inteligência e partir para a ignorância. Aliás, partir não; permanecer seria um verbo mais exato. Ou ainda mergulhar, imergir, aprofundar, num segundo estágio. Onde? Na burrice, na estupidez, na cretinice, na irrelevância.
Deixar para trás qualquer idéia de que a TV, desligada, sirva para algo mais do que para esquecer a conta de luz, e, ligada, para algum propósito diferente do que vender produtos. Enfiar a cara na evidência de que a TV é mesmo emburrecedora, alienante, máquina de fazer doidos, ópio do povo -e, como móvel, estorvo.
Um mundo em que a TV fosse desinvestida de qualquer expectativa, menos da publicitária, seria um mundo mais apaziguado num certo sentido. Seria mais simples descartar a TV se ela fosse totalmente descarnada, reduzida a seu esqueleto de ferramenta de convencimento, de lavagem cerebral para o consumo mais porco. Mas não, a gente fica achando que a TV pode ser divertida, emocionante, didática, informativa, que ela pode ser um meio em que o melhor das realizações humanas seja mostrado, que ela deve ser xis ou ípsilon.
E dá, quase que sempre, com os burros n'água. Até que, zapeando, pára diante do E! - Entertainment Television. E lá estaciona por alguns minutos. Dez. Depois 20, 60. Ultrapassada a barreira da uma hora, as outras escoam como manteiga derretida. E lá se vai uma noite inteira diante do canal mais sem-vergonha da TV mundial (com algum exagero retórico), embalado pelo nada absoluto (sem muito exagero).
Porque, se não realiza totalmente essa distopia da TV sem máscaras, o E! chega muito, mas muito mesmo, perto disso.
O E! entende, como poucos, que ver TV é pura voragem de tempo, voracidade de consumo de imagens -e quanto mais anódinas, melhor. Para quem não conhece, é um canal dedicado às celebridades -do cinema, TV, mundo do "entertainment" e limbo produtor de celebridades; dos EUA, claro, mas também da América Latina- e, com um acerto de gênio, as exibe em várias circunstâncias, empacota suas aparições em programas diferentes, extrai de suas vidas o máximo de fofocas e é isso.
Os que fazem o E! entendem como poucos o desejo de abandono, de obnubilação que acomete o espectador. Medem com precisão o mínimo de informação e emoção que uma imagem deve ter para poder atrair e manter o olhar -e, se isso é o que eles querem, é isso que terão. Particularmente habilidosos eles são em dar para esse supra-sumo da vacuidade um ar de credibilidade: seus programas vivem lotados de jornalistas, especialistas, subcelebridades que dão, muito compenetrados, depoimentos sobre o cabelo de não-sei-quem ou o divórcio de não-sei-que outro.
E, por fim, reinam, absolutos, num mundo feito de nadas cuidadosamente embalados.

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