São Paulo, sexta-feira, 30 de março de 2001

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CRÍTICA/LIVRO

Bellotto consegue fazer literatura de entretenimento honesta e palatável

BIA ABRAMO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"BR-163" começa com duas epígrafes, do "Guia Quatro Rodas" e do "On the Road", de Jack Kerouac, mas ainda bem que Tony Bellotto fiou-se mais na primeira do que na segunda.
Nenhum problema com Kerouac (na verdade, alguns, mas que não cabem agora), mas é que o terceiro livro de Bellotto está mais próximo da linguagem clara, descritiva, do "Guia" do que da mitificação cool do beat.
Suas "duas histórias na estrada" fundam-se num notável despojamento: trata-se mesmo de contar duas histórias, tangencialmente relacionadas. Apesar de parecer um truísmo, é importante assinalar quando um autor diz que vai contar duas histórias e o faz de verdade, porque a praga de uma certa literatura média contemporânea é justamente a ambição de dar passos maiores que as pernas.
São policiais que se pretendem "radiografias" da marginalidade, romances para moças disfarçados em dramas existenciais aparentemente profundos, coletâneas de clichês proto-religiosos que tentam nos empulhar uma sabedoria superior. O que há de errado em contar uma história, bem contadinha, e só? Talvez o treino pop profissional de Bellotto (lembrando, ele é guitarrista dos Titãs) tenha ajudado no exercício de circunscrição de um projeto dentro dos limites cabíveis.
Talvez a experiência dos dois livros anteriores, "Bellini e a Esfinge" (1995) e "Bellini e o Demônio" (1997), tenha dado cabo dos fumos do maneirismo noir em favor de uma certa simplicidade. Não importa muito de onde ele tirou, mas o fato é que "BR-163" cumpre o que promete.
As tais duas histórias, na verdade, revelam-se uma só desdobrada em dois tempos. No primeiro, acompanhamos a policial Lavínia perseguindo um fugitivo da polícia. À medida em que se desloca entre o extremo oeste paulista até o Mato Grosso, Lavínia reconstitui sua infância órfã, a busca pela mãe e a identidade do fugitivo.
Na segunda, a prostituta Selene envolve-se num esquema para livrar o pai falsificador da cadeia e acaba tendo de fugir também.
O bacana é que, apesar de sugerir implicações e motivações psicológicas talvez complexas (a policial que investiga o próprio passado, a filha que arruína a sua vida para salvar um pai no mínimo omisso), ele não cede à tentação de "aprofundá-las", o que o livra de cair no sentimentalismo pragmático do qual os filmes americanos são os mestres. Elas estão lá mais como dados do cenário, expostas, descritas e reconstituídas como fluxo de consciência de alguns personagens, mas quase que só para servir de baliza e de combustível para diálogos e ação.
O que por vezes se revela problemático é o não-delineamento muito preciso dos personagens. Os dois "duros", o policial Cardoso, parceiro de Lavínia, e Ubirajara Zarur, "protetor" de Selene, embora de certa forma secundários, tendem a confundir-se ao final da leitura. Há trechos em que as falas das protagonistas Lavínia e Selene poderiam ser trocadas, e momentos em que elas simplesmente desaparecem, dando lugar a suas reflexões e reações que mais parecem pertencer ao autor.
A leveza tem seu(s) preço(s), é claro. Pelo menos, em sua desambição de contar uma história movimentada, ágil, cheia de idas e vindas e de violência em suspensão por uma estrada brasileira, Bellotto consegue fazer literatura de entretenimento honesta e palatável. O que, digamos, não é tudo, mas não é pouco neste país.



BR-163 (Duas Histórias na Estrada)
   
Autor: Tony Bellotto
Editora: Companhia das Letras
Quanto:R$ 25 (211 págs.)




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