São Paulo, sexta-feira, 30 de março de 2001

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CINEMA/ESTRÉIA

"TRINTA ANOS ESTA NOITE"

Cópia restaurada de filme de 1963 do cineasta francês volta ao cartaz em São Paulo

Louis Malle escapa do anacronismo de época

CÁSSIO STARLING CARLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vistos depois de tantos anos de existência, alguns filmes costumam ser atacados por certo anacronismo dos costumes neles retratados. Revisto, "Trinta Anos Esta Noite", filme dirigido pelo francês Louis Malle em 1963, escapa ileso dessa maldição. Pois, mesmo que alguns figurinos e cenários possam parecer datados, seu anti-herói, Alain Leroy, enfrenta questões ainda pertinentes a qualquer ser humano, tais como o envelhecimento e a morte.
O título original "Le Feu Follet" (Fogo Fátuo), do romance de Drieu La Rochelle, do qual o filme é uma adaptação, traduz a incerteza do personagem (e, por consequência, da própria época) com o fim da juventude.
Vivendo numa clínica de reabilitação de alcoólatras, Alain preenche seu cotidiano com outras tantas histórias de fracasso. A estrela deprimida que se afundou em drogas, o garoto que colou asas às costas e saltou da janela são alguns sonhos abortados que Alain recorta em jornais e revistas e cola nas paredes de seu quarto.
Mas não se trata aqui de um melodrama, daqueles filiados a uma suposta poética do desespero. Estamos mais próximos do teatro do absurdo do qual tivesse sido extraído todo traço de humor. O drama, se há, domina apenas a sequência de abertura e o tiro, na cena final.
Malle abre o filme tirando proveito da riqueza literária para aproximar o espectador da miséria existencial de seu personagem. O recurso do texto em "off" preserva as nuances do romance de La Rochelle (também um suicida) e ao mesmo tempo traz a profundidade psicológica do personagem para a superfície da tela.
Progressivamente, abandona sua origem literária e passa a se orientar como objeto de puro cinema, por meio do olhar, o magnífico olhar atônito que Maurice Ronet empresta ao personagem.
Ao olhar perturbado do personagem, o filme ainda opõe um outro, dado pela própria maneira como Malle filma os objetos e os pequenos gestos cotidianos. O modo como mostra um pentear de cabelos, um cheque sendo preenchido, os passantes ou mesmo um elemento dramaticamente mais relevante (como a arma) é de uma crueza realista, quase documental.
Isso faz com que esses objetos e esses gestos adquiram um peso, o de sua pequena indiferença ou banalidade, alheio ao "grande drama principal". O resultado é a contraposição dessa "ausência de sentido" à incessante perambulação do personagem, cada vez mais perdido, em busca de "algum sentido".
É nessa busca que ele deixa Versalhes e parte para Paris, onde, sucessivamente, encontra desde o grande amigo de vida boêmia convertido em pacato pai de família até a ex-namorada mergulhada na "futilidade social".
A partir da sequência parisiense ganha ainda mais significado o fator perambulação, marca forte dos primeiros filmes de Malle (cuja matriz é Jeanne Moreau andando sem rumo pela Paris noturna em "Ascensor para o Cadafalso" e que depois viria influenciar até Antonioni, entre outros grandes).
Perambular, ação símbolo de todo o cinema moderno desde "Ladrão de Bicicleta", coincide com os movimentos da própria vida nesta pequena obra-prima.



Trinta Anos Esta Noite
Le Feu Follet

    
Direção: Louis Malle
Produção: França, 1963
Com: Maurice Ronet, Léna Skerla
Quando: a partir de hoje no Top Cine




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