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LITERATURA
Os cardeninhos de Proust
Livro "Carnets", publicado agora na França, reúne anotações inéditas das cadernetas do autor, incluindo esboços da obra "Em Busca do Tempo Perdido"
ALCINO LEITE NETO
DE PARIS
Em 1908, Marcel Proust ganhou
de madame Strauss, viúva do
compositor Georges Bizet, cinco
cadernetas para anotações, compradas na chique loja inglesa
Kirby, Beard & Cia., em Paris.
O escritor adorou o presente:
"Eu estou encantado, eu lhe agradeço de todo o meu coração". Para a história da literatura, elas
iriam adquirir um valor incalculável. Em quatro delas, Proust deixou os primeiros esboços de "Em
Busca do Tempo Perdido" (A La
Recherche du Temps Perdu), um
dos monumentos do romance
ocidental.
O livro "Carnets" (Cadernetas),
publicado agora na França, reúne
todas essas anotações do escritor,
feitas entre 1908 e 1917. Fora a caderneta mais antiga, utilizada entre 1908 e 1911, é a primeira vez
que as demais são publicadas.
Não é uma edição facsimilar, mas
reproduz, por um sistema de símbolos e outros recursos gráficos,
todos os rascunhos, com seus cortes, rejeições, lacunas e pensamentos soltos.
As cadernetas permitem não
apenas acompanhar a concepção
da "Recherche", mas também as
dúvidas estéticas e o método de
escrita de Proust (1871-1922).
Elas trazem frases colhidas no
dia-a-dia, cenas vistas ou rememoradas, trechos inteiros que
irão depois para os livros, listas de
nomes de gente e lugares e, no
meio disso tudo, um bom número de endereços de soldados e rapazes de bairros pouco recomendados de Paris -possivelmente
"homens de encontro".
As cadernetas tinham um bom
formato para serem carregadas
nos bolsos das roupas à época.
Eram muito longilíneas, com cerca de 25 cm de comprimento e 6
cm de largura, em média. Proust
começou a usá-las imediatamente. Mais tarde, elas lhe serviriam
de referência para o conjunto de
cadernos onde iria redigir a "Recherche" -95 no total.
Para diferenciar as cadernetas e
poder remeter às anotações que
cada uma continha, Proust deu
nome a cada uma delas. A Caderneta 1 estampava na capa um jovem loiro, vestido de mantô verde. Proust chamou-a de "Grande
Caderno Kerby (sic) Beard Rapaz". A Caderneta 2 levava a figura de uma loirinha, com uma túnica verde. Virou o "Caderno
Kerby Beard Moça". A Caderneta
3 ganhou o nome de "Caderno do
Senhorzinho" -com sua imagem de um homem moreno, com
um longo sobretudo.
Na Caderneta 1, Proust ainda se
pergunta se deveria dedicar a vida
ao romance ou ao ensaio: "As advertências de morte. Logo você
não poderá dizer tudo isso. A preguiça ou a dúvida ou a impotência
se refugiando na incerteza sob a
forma de arte. Será preciso fazer
um romance, um estudo filosófico, eu sou romancista?".
Recheada de notas autobiográficas e referências literárias e filosóficas, a primeira caderneta traz
pouco da "Recherche" e muito de
"Contra Saint-Beuve" (só publicado em 1954), que é praticamente concebido ali. O primeiro volume da "Recherche", "No Caminho de Swan", apareceria em
1913. A publicação da obra-prima
se estenderia até depois da morte
do escritor, em 1927, com a edição
de "O Tempo Redescoberto".
Na Caderneta 2, que o escritor
utilizou entre 1913 e 1916, a "Recherche" já predomina. Proust está obcecado pelo seu universo ficcional. Os personagens e os lugares aparecem: Gilberte, Odette,
Bergotte. Alguns, com nomes que
mudariam depois -Vinteuil surge como Berget, Albertine ainda é
Maria, a cidade de Balbec é chamada de Cricquebec e depois de
Bricquebec.
Na Caderneta 3, usada entre
1913 e 1918, surge pela primeira
vez a referência à música de Vinteuil, passagem célebre da "Recherche": "Para Vinteuil ainda
fim da (sinfonia) de Franck...".
A Caderneta 4 foi utilizada entre
1914 e 1917 e também nela tudo gira em torno do romance. Proust
revê partes já publicadas, acrescenta situações e frases, desdobra
outras para os futuros livros, enfatizando a importância das anotações com as palavras "capital" e
"capitalíssimo".
Para o leitor da "Recherche", os
"Carnets" são uma espécie de livro mágico, cujos fragmentos decompõem e recompõem o mundo proustiano, produzindo novas
surpresas e descobertas. Para
qualquer leitor, as cadernetas demonstram como a maior literatura, para ser feita, exige paixão, obsessão, observação e muito, mas
muito trabalho.
CARNETS - De Marcel Proust (1871-1922). Edição estabelecida e
apresentada por Florence Callu e
Antoine Compagnon. Editora Gallimard.
446 págs. 24,50 euros (cerca de R$ 50).
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