São Paulo, sábado, 30 de março de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Livros de autores da Nicarágua e do México abordam a ausência da comédia na tradição ibero-americana

Cômico sobrevive em Ramírez e Solares

CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A comédia não tem história porque ninguém a leva a sério." Devemos essa frase maravilhosa a Aristóteles, em sua "Poética", e, para atualizá-la, foi preciso passar pela "comédia" medieval cristã como peregrinação acidentada da alma até sua salvação à margem de um Deus cuja eternidade, ao nos acolher, nos liberta das vicissitudes da "comédia" humana.
Quando o publicou, em 1314, Dante chamou a seu périplo poético "commedia" simplesmente. A parte "divina" é um comentário crítico devido a Ludovico Dolce, em 1555 -ou seja, quando o terreno renascentista já estava fertilizado para que Cervantes e Shakespeare pudessem conferir à "comédia" sua conotação humanista: a atualidade como incidente absurdo, passageiro.
Se começo por esse prólogo necessário, é apenas para me aproximar do "cômico" como uma das ausências mais assinaladas da literatura ibero-americana. Nossa literatura tem tido a tendência a ser séria, quando não solene. A exceção, nisso e em tudo, é Machado de Assis. Mas, para que a comédia como eixo narrativo apareça na América Latina, será preciso esperar por Macedonio Fernández, Robert Arlt e sua descendência: Borges, Cortázar e a fusão de Bioy e Borges: Biorges.
Adquirida sua carta de naturalização e sua plena cidadania literária, a comédia latino-americana já é uma história que se leva a sério, porque apenas o cômico abrange plenamente os incidentes de nossa modernidade confusa.
Dois exemplos brilhantes do que acabo de dizer são representados, em dois registros muito diferentes, por Sergio Ramírez, da Nicarágua, e Ignácio Solares, do México. Ramírez é um reconhecido mestre do absurdo cômico derivado do incidente variável. Agora, em "Catalina y Catalina", desfralda seu talento cômico na brevidade restrita do conto. Vamos do sorriso à gargalhada, com passagem de ida e volta.
Embora os 11 contos de Sergio Ramírez sejam de qualidade semelhante, acredito que "La Viuda Carlota" vai ficar nas antologias do relato humorístico por sua conjunção livre de incidentes majestosamente cômicos, dignos de Chaplin, Buster Keaton e os grandes bufões do cinema mudo.
Já no mundo de humor fantástico criado por Ignacio Solares em "El Espía del Aire", demonstra-se que o humor, pela via da fantasia, cria situações de comédia silenciosa, secreta, interna: não nos ouvimos rir, porque estamos ocupados demais sorrindo.
A nostálgica recriação da Cidade do México dos anos 60, quando o país perdeu a fé, conduz à recriação da cidade dos anos 40, quando o México tinha fé. A passagem de um tempo a outro é proporcionada por uma cédula de identidade encontrada na bilheteria do cine Olímpia.
O documento data de meados dos anos 40. Objeto de identificação frágil, passageiro e, por isso, cômico, permite ao protagonista deslocar-se para outro tempo, conhecer a mulher desaparecida e enfrentar o dilema de quem viaja no tempo: retornar ou ficar?
A comédia se aproveita de que não tem história e ninguém a leva a sério para derrotar os dragões da ortodoxia, sem que os monstros se dêem conta de que foram mortos pela união maravilhosa da imaginação com o riso: a comédia. Assim, Ignacio Solares e Sergio Ramírez nos defendem e enriquecem a todos seus leitores.


Carlos Fuentes é mexicano, autor de "A Morte de Artemio Cruz", entre outros
Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Trecho
Próximo Texto: "Diário do farol" João Ubaldo Ribeiro investiga equivalência entre o bem e o mal
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.