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"DIÁRIO DO FAROL"
João Ubaldo Ribeiro investiga equivalência entre o bem e o mal
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
"Diário do Farol", de João
Ubaldo Ribeiro, é desses
livros sobre os quais os críticos
adoram escrever. É arguto, engenhoso, refinado. Há alusões a Sade, Shakespeare, Schopenhauer,
Montaigne, Maquiavel. E tem
muito sangue, assassinatos, envenenamento, loucura, traição, tanto quanto em "Hamlet", digamos.
O que mais podemos querer?
O personagem principal é um
velho ex-padre que narra sua história a partir de um farol situado
numa ilhota deserta. Ele alcunhou
esse seu farol de Lúcifer, o portador da luz. "É curioso", diz, "como o Lúcifer da Bíblia aparece
apenas em Isaías, enquanto Satanás aparece muitas vezes, até claramente como mais uma das criaturas de Deus."
O velho afirma estar acima do
bem e do mal, conceitos que, para
ele, são intercambiáveis: "São ambos nomes para as mesmas coisas
(...). Só fazemos o Bem porque somos maus. E só fazemos o Mal
porque somos bons". Parece ter
saído das páginas de Sade, em seu
desprezo pela sociedade e pelo
prazer em infligir a dor.
Mas, ao contrário de Sade, em
cuja obra não há porquês nem
densidade psicológica, há uma
causa para muitas das ações perversas do pároco. O livro não deixa de ser uma espécie de confissão, de grande palco armado a fim
de justificar as razões de um homem sem razão.
O pai é a razão. Filho de um
cruel latifundiário, o protagonista
guarda a memória de surras, torturas e humilhações. Pior: compreende que o pai matou a mulher para ficar com a cunhada.
Desde cedo, o espectro materno
vem sussurrar-lhe vingança.
É "Hamlet" às avessas, claro.
Mas, diferentemente da peça de
Shakespeare, desconfiamos da
culpabilidade do suposto assassino. No romance de Ubaldo só temos a palavra do protagonista, e
essa, sabemos, não vale nada. Não
porque o personagem não seja
honesto. Afinal, toda sua argumentação se baseia no fato de ele
estar dizendo a verdade, de tudo
estar exposto ali às claras.
A questão é que podemos duvidar não só de sua isenção psicológica, mas de sua sanidade mental.
Embaralhando o mal e o bem, o
personagem pode vir a enxergar o
mal em tudo. Podemos dizer que
o pai do protagonista matou-lhe a
mãe tanto quanto Capitu traiu
Bentinho em "Dom Casmurro".
Ou seja, não temos certeza. Isso, é
claro, não desmonta a lógica do
seu bem enredado discurso.
Na primeira parte, vemos o protagonista dar início à sua desforra.
Na segunda, ele, já padre, colaborador do regime militar, encerra a
vingança contra o pai, além de
perpetrar outra, contra uma personagem surgida no meio.
É Maria Helena, moça católica
que depois passa a combater a ditadura. O cura se apaixona por
ela, que recusa seus apelos, mesmo quando ele se dispõe a largar a
batina. Para vingar-se, ele se recusa a galgar a hierarquia eclesiástica e fica na pequena paróquia.
O padre age como agente infiltrado em grupos de esquerda. Sob
disfarce, participa de torturas. Comanda assassinatos. Tudo parece
distante da sua primeira vingança
inicial, mas não está. De pronto,
nos mostra que ele pode estar
contando a verdade. A sua, ao
menos. Pois quem tem coragem
de se desnudar de modo tão grotesco na segunda parte não precisaria mentir para justificar outros
atos inomináveis na primeira.
Estamos diante de um raciocínio escolástico, ainda que em negativo. Em vez de conciliar fé e razão, o personagem procura mostrar que não há diferença básica
entre o bem e o mal. Para isso, é
inevitável a morte do pai, o detentor do saber arcano e odiado.
Diante da ausência de sentido do
mundo resultante, algo, para ele,
próximo da loucura, só é possível
se guiar por um farol: o facho baço que o inferno lhe proporciona.
Diário do Farol
Autor: João Ubaldo Ribeiro
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 25 (304 págs.)
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