São Paulo, segunda, 30 de março de 1998

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7º FESTIVAL DE TEATRO DE CURITIBA
Erros de direção comprometem "Vânia"

NELSON DE SÁ
enviado especial a Curitiba

A atriz Leona Cavalli, no papel de Sofia, tranças vermelhas, o rosto imaculado, Leona que já foi Ofélia, diz, a certa altura de "Tio Vânia", de Anton Tchecov, na nova tradução de Vadim Nikitin: "Eu sou feia!". Não é, pelo contrário.
Até aí, nenhum problema, na montagem que estreou no final de semana no festival de Curitiba ou em qualquer outra. Se tem algo que o teatro não exige é a verossimilhança rasteira. Jovens fazem velhos (é lendário o rei Lear de Orson Welles, aos 24 anos), homens fazem mulheres, mulheres fazem homens, não importa.
O problema é a encenação, do bom ator tornado diretor iniciante Élcio Nogueira. Ela parece querer ser o mais naturalista, nos seus figurinos "de época", nos seus objetos de cena, na própria -tão confusa- cenografia. Nos momentos em que foge à verossimilhança é que se dá melhor.
Pouco interessa, como se sabe, se "Tio Vânia" se passa num solar russo, como indica o autor, ou num teatro em ruínas, em ensaio, como no filme recente, belíssimo, de Louis Malle. Mas, se o projeto é naturalista, como parece, que tudo seja. E tudo seja muito bem realizado, porque o "teatrão" também tem as suas exigências.
"Tio Vânia", com um dos melhores elencos que é possível reunir no palco, no Brasil, perde a direção. Diálogos tão profundos, atores tão bons, por que estragar?
É flagrante que o elenco está pouco à vontade com o que tem à sua volta, e não só por estar estreando, no que lembrava até um ensaio de figurino. Há objetos, figurinos sem porquê, elementos de mera decoração -e mal-feitos, vestidos que nem se adequam ao corpo das mulheres.
Sobretudo, há marcações sem sentido, formalidades. Tio Vânia (Renato Borghi) discute com Serebriakov (Wolney de Assis) e as duas jovens, Ielena (Mariana Lima) e Sofia (Leona Cavalli) ficam pelos cantos, representando à toa algum drama barato.
Renato Borghi, Mariana Lima, Leona Cavalli, Luciano Chirolli, Abrahão Farc -é difícil imaginar um elenco melhor, qualquer que seja a montagem, hoje no país.
Borghi, cercado pela inverdade frustrante da encenação, ergue uma encenação só dele, como se vivesse, como Vânia, perdido em suas fantasias individuais de felicidade, melancólico pela existência perdida, batendo contra a realidade de quando em quando, só para voltar de novo a si mesmo.
Renato Borghi, que já foi tudo no teatro, fecha-se para uma interpretação, para variar, de grande talento. Ele é Vânia, que, aos 47 anos, agarra-se às paixões que não teve, às ambições que não teve por covardia ou pequenez.
Com uma linda atriz como Mariana Lima no papel de Ielena e um texto como "Tio Vânia", de alta carga sensual, esta seria a montagem mais indicada para trazer ao país um tema que só começa a surgir neste ano do centenário do Teatro de Arte de Moscou: a sensualidade em Tchecov.
Uma biografia recém-lançada ("Anton Chekhov, a Life", de Donald Rayfield), resultado da abertura dos arquivos russos, particularmente de suas cartas, e os escritos recentes de tradutores como o americano David Mamet apontam um autor bem diverso da imagem que fizeram dele no século.
Um autor tão menos sutil do que queriam, tão mais arrebatado.
A peça existe porque a beleza de Ielena existe. Ela faz mover os personagens, faz com que alterem suas vidas, sonhem. Vânia acorda para a sua morte em vida. Um médico idealista, Astrov (Luciano Chirolli), deixa tudo de lado por ela, o horário do chá se perde, a vida rural se desfaz.
Mariana Lima responde bem às exigências do papel, a maior parte do tempo. É jovial, sensual, sedutora. Mas a cena da discussão entre Vânia e Serebriakov é apenas uma entre várias em que se perde, sem direção. Leona Cavalli passa a peça saltando das esperanças amorosas de Sofia para sua resignação religiosa. Mais seguro está Luciano Chirolli, que integra bem o cinismo com a altivez e a paixão.



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