São Paulo, sexta-feira, 30 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA/ESTRÉIA

"DE PASSAGEM"

Filme conjuga movimento físico dos trens com interior dos personagens durante travessia pela cidade

Diretor estréia com odisséia urbana e lírica

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Os dois irmãos Jefferson e Washington e o amigo Kennedy são três garotos negros e pobres da periferia paulistana. Sua história é contada em dois momentos cruciais no longa-metragem de estréia de Ricardo Elias, "De Passagem".
O filme começa no presente, com a chegada de Jefferson (Silvio Guindane, o pivete de "Como Nascem os Anjos") à casa dos pais, depois de uma temporada no Rio, onde se iniciou na carreira militar.
Fardado e carrancudo, ele vem para enterrar o irmão Washington e investigar as circunstâncias de sua morte violenta.
Para ajudá-lo nessa jornada, que exigirá uma travessia pela cidade, Jefferson contará com Kennedy (Fábio Nepô), o velho amigo de infância. Mas este, assim como a cidade, também já não lhe é mais familiar.
O jovem cadete dirige a Kennedy uma surda hostilidade, por suspeitar que o rapaz está envolvido com a criminalidade e, de alguma maneira, com a morte de seu irmão Washington.
A jornada dos dois, de uma periferia a outra, será entremeada por lembranças de outra odisséia urbana, feita pelos três amigos quando ainda eram crianças e foram obrigados a levar uma encomenda mandada por um traficante do bairro.
Na orquestração desses dois tempos, o filme nos aprofunda ao mesmo tempo na paisagem social e na alma dos personagens.
O momento do passado não é evocado à toa ou por razões meramente sentimentais: ele revela uma daquelas encruzilhadas da vida em que se forma o caráter de um indivíduo.
Ao adotar essa perspectiva intimista, que remete a um certo lirismo social italiano, especialmente ao "cinema de sentimentos" de Valério Zurlini, Ricardo Elias se afasta do determinismo naturalista que marca um "Cidade de Deus", por exemplo.
Em outras palavras: a realidade social está ali, dura e feia, mas cada ser humano é "um estranho ímpar", como diz um belo verso de Carlos Drummond de Andrade Andrade (1902-1987).
"De Passagem" está longe de ser uma obra perfeita. Ao contrário: tem problemas visíveis de roteiro, interpretação de atores e "mise-en-scène". Há, por exemplo, uma vã tentativa de criar suspense por meio de uma perseguição que acaba se revelando desnecessária e artificial.
Mas tudo isso é compensado pelo olhar sensível que o filme dirige à cidade e aos indivíduos, pela maneira feliz como conjuga o movimento físico dos trens e ônibus ao movimento interior dos personagens. Por seu frescor e sinceridade, em suma.
Ganhador dos prêmios de melhor filme, direção e roteiro no último Festival de Gramado, "De Passagem" traz, desde o título, a marca do precário e do transitório. Talvez por isso seja um filme tão vivo, entre tantos outros que já nascem mortos.


De Passagem
   
Direção: Ricardo Elias
Produção: Brasil, 2003
Com: Silvio Guindane, Fábio Nepô, Mariana Loureiro
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Cineclube DirecTV, Frei Caneca Unibanco Arteplex, Interlagos, Lumière e circuito



Texto Anterior: Crítica: Narrativa mostra atrocidades de regime
Próximo Texto: "Como se Fosse a Primeira Vez": Comédia une amnésia a amor hollywoodiano
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.