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CINEMA/ESTRÉIA
"DE PASSAGEM"
Filme conjuga movimento físico dos trens com interior dos personagens durante travessia pela cidade
Diretor estréia com odisséia urbana e lírica
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Os dois irmãos Jefferson e
Washington e o amigo Kennedy são três garotos negros e pobres da periferia paulistana. Sua
história é contada em dois momentos cruciais no longa-metragem de estréia de Ricardo Elias,
"De Passagem".
O filme começa no presente,
com a chegada de Jefferson (Silvio
Guindane, o pivete de "Como
Nascem os Anjos") à casa dos
pais, depois de uma temporada
no Rio, onde se iniciou na carreira
militar.
Fardado e carrancudo, ele vem
para enterrar o irmão Washington e investigar as circunstâncias
de sua morte violenta.
Para ajudá-lo nessa jornada,
que exigirá uma travessia pela cidade, Jefferson contará com Kennedy (Fábio Nepô), o velho amigo
de infância. Mas este, assim como
a cidade, também já não lhe é
mais familiar.
O jovem cadete dirige a Kennedy uma surda hostilidade, por
suspeitar que o rapaz está envolvido com a criminalidade e, de alguma maneira, com a morte de
seu irmão Washington.
A jornada dos dois, de uma periferia a outra, será entremeada
por lembranças de outra odisséia
urbana, feita pelos três amigos
quando ainda eram crianças e foram obrigados a levar uma encomenda mandada por um traficante do bairro.
Na orquestração desses dois
tempos, o filme nos aprofunda ao
mesmo tempo na paisagem social
e na alma dos personagens.
O momento do passado não é
evocado à toa ou por razões meramente sentimentais: ele revela
uma daquelas encruzilhadas da
vida em que se forma o caráter de
um indivíduo.
Ao adotar essa perspectiva intimista, que remete a um certo lirismo social italiano, especialmente
ao "cinema de sentimentos" de
Valério Zurlini, Ricardo Elias se
afasta do determinismo naturalista que marca um "Cidade de
Deus", por exemplo.
Em outras palavras: a realidade
social está ali, dura e feia, mas cada ser humano é "um estranho
ímpar", como diz um belo verso
de Carlos Drummond de Andrade Andrade (1902-1987).
"De Passagem" está longe de ser
uma obra perfeita. Ao contrário:
tem problemas visíveis de roteiro,
interpretação de atores e "mise-en-scène". Há, por exemplo, uma
vã tentativa de criar suspense por
meio de uma perseguição que
acaba se revelando desnecessária
e artificial.
Mas tudo isso é compensado
pelo olhar sensível que o filme dirige à cidade e aos indivíduos, pela maneira feliz como conjuga o
movimento físico dos trens e ônibus ao movimento interior dos
personagens. Por seu frescor e
sinceridade, em suma.
Ganhador dos prêmios de melhor filme, direção e roteiro no último Festival de Gramado, "De
Passagem" traz, desde o título, a
marca do precário e do transitório. Talvez por isso seja um filme
tão vivo, entre tantos outros que
já nascem mortos.
De Passagem
Direção: Ricardo Elias
Produção: Brasil, 2003
Com: Silvio Guindane, Fábio Nepô,
Mariana Loureiro
Quando: a partir de hoje nos cines
Bristol, Cineclube DirecTV, Frei Caneca
Unibanco Arteplex, Interlagos, Lumière e
circuito
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