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São Paulo, sexta-feira, 30 de maio de 2003

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CINEMA/ESTRÉIAS

"BARAN"

Após início trivial, longa revela sentimentos um tanto fora de moda

Iraniano recupera virtudes da delicadeza e do pudor

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

No cinema, o realismo é uma tendência tinhosa, pois se o que vemos na tela limita-se a representar a vida cotidiana, acaba nos oferecendo uma experiência apenas desinteressante, quando não tediosa.
Esse tipo de filme só passa a interessar de fato quando, à força de não abrir mão de seus princípios, começa a registrar algo que não costumamos captar a olho nu. Isso é que faz o encanto de um cineasta como Abbas Kiarostami, ou de um filme como "O Dia do Perdão" -encanto que, para se manifestar, depende de que o espectador se abra ao excesso de realidade e se mostre receptivo.
O início de "Baran" promete uma sessão tediosa. Estamos num edifício em construção, entre operários afegãos ilegais. Não é muito emocionante, e Majid Majidi, diretor do filme, parece enfatizar esse aspecto, trabalhando num registro quase monocromático.
Lembra "Metrópolis", o clássico mudo de Fritz Lang, sem superprodução ou aventura. O pouco de emoção, nesse início, vem de Lateef, jovem iraniano que passa os dias fazendo compras e servindo chá para os demais operários.
Sua desgraça começa quando um operário afegão, ilegal, quebra a perna. Impossibilitado de trabalhar e ganhar a vida, ele manda no lugar seu filho Rahmat. Jovem demais para o trabalho pesado, Rahmat assume as funções de Lateef, que não gosta nada da mudança. Enciumado, Lateef passa a hostilizar o menino, cujos gestos passa a observar tão obsessivamente que, a horas tantas, descobre que ele não é ele, mas ela, e que seu nome é Baran, e não Rahmat.
Esse é o momento que transforma o destino do filme, pois daí por diante deixará de lembrar "Metrópolis" para evocar outra história, a de "Sublime Obsessão", esse melodrama filmado duas vezes, por John Stahl e Douglas Sirk. O princípio do protagonista em "Sublime Obsessão" consiste em fazer o bem sem ser reconhecido. Em linhas gerais, é isso que Lateef fará. Como o protagonista daqueles filmes, seu altruísmo é movido pelo amor.
Desde então, Majidi abandonará o ponto de venda do filme (história de operários afegãos no exílio iraniano e seus sofrimentos -o que interessa sobretudo aos americanos, já que espicaça os russos, bombardeia o Taleban e alfineta o Irã). Deixará de lado também o cinza insistente do início e permitirá que as cores invadam a imagem, que os detalhes pontuem a trama e ofereçam, enfim, esse excesso de real de que o filme se ressente no início.
São imagens cujo pudor reforça a beleza: o rosto da garota apenas entrevisto através de uma porta, um objeto que se perde nas águas límpidas de um riacho, a marca de um pé amado impressa no barro. Essas cenas convivem com outras, menos animadoras, meio clichês, como o reflexo do rosto de Lateef na água turbulenta.
No que é essencial, descobrimos com "Baran" algumas novas dívidas em relação ao Islã (que costumamos ver como um bando de fanáticos terroristas), como a perpetuação de sentimentos um tanto fora de moda entre nós, como o pudor, a delicadeza, a timidez.
Não é pouca coisa para um filme, assim como não é pouco evocar "Sublime Obsessão" de maneira inteiramente original. É mais do que suficiente para o espectador esquecer a aridez e a trivialidade que a primeira parte do filme parece prometer.


Baran
Idem
   
Produção: Irã, 2001
Direção: Majid Majidi
Com: Hossein Abedini, Zahra Bahrami e Mohammad Amir Naji
Quando: a partir de hoje nos cines Belas Artes, Cineclube DirecTV e Espaço Unibanco



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