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São Paulo, sexta-feira, 30 de maio de 2003

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Estratégia de marketing e ação da mídia "plugam" a sociedade em um simulacro do mundo

Enjaulados na matrix

France Presse
Mulher passeia em frente a um pôster de "Matrix Reloaded", em Bancoc; nos EUA, filme perde bilheteria para Jim Carrey
 
Divulgação
O ator Keanu Reeves (Neo) em cena do filme "Matrix Reloaded"


FRANK RICH
DO "THE NEW YORK TIMES"

"Matrix Reloaded" é enfadonho, literalmente regido por Morpheus, o personagem que induz ao transe representado por Laurence Fishburne. Mas não faz mal. Ninguém pode discutir com uma estréia que arrecada US$ 135,8 milhões em quatro dias. A própria estréia já validou a premissa do filme.
A idéia presente em "Matrix" é que a humanidade vive plugada num programa de realidade virtual criado por máquinas para brincar com nossos cérebros ao mesmo tempo em que roubam a potência bioelétrica de nossos corpos. A AOL Time Warner, a máquina poderosa por trás dos filmes, realizou uma façanha semelhante ao plugar os EUA em seu programa de marketing de "Matrix Reloaded", com o objetivo de saquear nossos bolsos.
"A partir da segunda-feira, 28 de abril, o índice de consciência desse filme será de 95%", disse seu produtor, Joel Silver, à revista "Entertainment Weekly", semanas antes da estréia de "Reloaded". Nos EUA, país em que dois terços da população não sabe os nomes de nenhum dos nove candidatos democratas à presidência, de acordo com sondagem da CBS e do "The New York Times", é uma façanha. Para consegui-la, é certo que os produtores tiveram a ajuda da própria "Entertainment", publicação da AOL Time Warner que colocou "Reloaded" na capa duas vezes em um só mês.
A genialidade da estratégia de relações públicas adotada foi a exploração do status cult do filme original, visto como uma espécie de orgia de kung fu para jovens pensantes. "Reloaded" não seria apenas mais uma sequência hollywoodiana inflada -em lugar disso, teria peso filosófico suficiente para impulsionar uma nova geração de web sites metafísicos. A partir disso, surgiram os artigos exageradamente elogiosos, enfatizando que seus criadores, os irmãos Wachowski, não dão entrevistas. Para reforçar a idéia, apareceu Cornel West, um professor de Princeton que tem uma participação minúscula no filme e não se mostra nem um pouco avesso com a imprensa. Ele disse à "Time" (para sua matéria de capa) que ""os irmãos curtem filosofia e poesia épica, Schopenhauer e William James" e que "Larry Wachowski sabe mais sobre Herman Hesse do que a maioria dos acadêmicos alemães".
Tão distantes do pragmatismo vil estão os irmãos Wachowski, que chegaram ao ponto de limitar a criação de produtos ligados à franquia "Matrix", segundo seus agentes publicitários. "Os cineastas não quiseram desagradar a sua base de fãs, vendendo-se por dinheiro", disse ao "The Wall Street Journal" um executivo ligado ao filme. Assim, eles limitaram os produtos ligados a "Reloaded" ao videogame "Enter the Matrix", a figuras de ação, óculos de sol e um DVD de animação. Outros produtos de imagem ligada ao filme também foram mantidos ao mínimo: bebidas Powerade, Cadillac, motos Ducati e cerveja Heineken. Para que ninguém possa pensar que essa comercialização equivale a "vender-se" no mau sentido, fomos avisados de que os Wachowski traçaram um limite: rejeitaram uma proposta para autorizar o McDonald's a criar lanches com a temática "Matrix".
Hoje a AOL Time Warner é um dos conglomerados gigantes de mídia que mais problemas enfrenta. Mesmo em estado enfraquecido, ela possui os recursos necessários para fazer a atenção de boa parte dos EUA voltar-se para qualquer história que contar.
A promoção que está fazendo de "Reloaded" constitui um uso relativamente benigno desse poderio enorme: se você for sugado para dentro do filme e não gostar, o pior que pode lhe acontecer é perder algumas horas de seu tempo e o preço de um ingresso. Mas as gigantes da mídia que detêm um poder tão considerável nem sempre o utilizam para fins tão frívolos assim. Não somos plugados apenas para que elas possam nos vender filmes e outros produtos de entretenimento. Essas empresas também têm condições de plugar o país em narrativas noticiosas tão onipresentes e leves quanto "Reloaded", mas que são acompanhadas por efeitos colaterais mais prejudiciais.
É o que vem acontecendo durante a luta da América contra Osama bin Laden. Durante os anos em que os terroristas da Al Qaeda se prepararam para o 11 de setembro, as gigantes da mídia estavam ocupadas vendendo coisas como os escândalos de Bill Clinton, a vida sexual de Gary Condit e ataques de tubarões. Todas essas eram notícias legítimas. Mas o efeito que exerceram foi mais ou menos análogo ao que "Reloaded" está tendo ao ser exibido em 8.517 salas, ocupando o espaço da maioria dos outros filmes.
Se existe algum herói em nossa própria saga "Matrix", talvez seja Barry Diller, que se expressa melhor em palavras do que Neo (Keanu Reeves), embora seja menos versado nas artes marciais. Diller, atual presidente da USA Interactive, já dirigiu a Paramount, a Vivendi e a Fox. Com a exceção do semi-aposentado Ted Turner, ele é o único magnata do "show business" que não adere sem questionar o argumento de que o advento de 500 canais de TV e um número infinito de sites garantem fontes alternativas de entretenimento e notícias. Ele diz que os 500 canais de TV vão acabar pertencendo todos às mesmas cinco empresas e que, com a chegada da banda larga, as empresas que controlam os modems a cabo velozes vão acabar por dominar também a web. "Nossa sociedade será prejudicada", diz ele.
Na opinião de Diller, essa concentração de poder explica boa parte do que vem dando errado em nossa cultura, desde a perda de qualidade do jornalismo na televisão até "o porquê de os filmes serem ruins". Para ele, são ruins porque hoje se encontram "a 20 círculos de poder de distância" dos principais responsáveis por tomar as decisões nessas empresas enormes. "Ninguém liga para os filmes", diz ele. "Não passam de produtos criados para dar retorno. As empresas não competem realmente umas com as outras. Elas se auxiliam. Os filmes da Fox precisam ser vendidos à HBO. A rede a cabo Warner precisa aceitar conteúdo da Fox porque a Fox tem esportes. Elas conversam apenas entre elas. Não são obrigadas a levar mais ninguém em conta."
Mas nem Diller nem mais ninguém deve pôr fim a essa consolidação do poderio cultural a não ser que o público saiba e se importe o suficiente para protestar. E essa hipótese parece ser altamente improvável. Recompensamos filmes medíocres com bilheterias recorde. Esperamos que nossa mídia jornalística apresente a verdade em versão ficcionalizada. E, como já foi observado por outros, o aspecto mais desanimador do escândalo envolvendo Jayson Blair talvez seja que os próprios sujeitos de suas matérias na maioria dos casos nem sequer se deram ao trabalho de queixar-se ao "The New York Times" pelas mentiras publicadas a seu respeito -simplesmente supuseram que isso fosse a prática comum e corriqueira dos jornais.
De uma maneira ou de outra, já estamos todos vivendo como em "Matrix".


Tradução de Clara Allain


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