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São Paulo, sexta-feira, 30 de maio de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Historinhas para o mês que se acaba

Já contei esta historinha em crônica antiga. Como é produto em domínio público, contada e recontada há alguns séculos, não faz mal que a conte mais uma vez, resumidamente, para ter espaço onde possa contar outras coisas.
Na Idade Média, num convento perdido nas montanhas do norte da Itália, uma freirinha tomava conta da capela, tinha as chaves das portas e dos armários, dela dependia o culto da comunidade de religiosas.
Indo um dia à vila mais próxima, viu um rapaz que a olhou com interesse. Voltando ao convento, tentou esquecer o rapaz, mas logo que pôde voltou à vila, viu o rapaz novamente -e por ele se apaixonou.
Decidida a fugir do convento, a freirinha preparou tudo e, como se sentia responsável pela capela, colocou as chaves aos pés de uma imagem de Nossa Senhora, que ficava ao lado do altar. Rezou, pediu perdão pela fuga e à noite, pulou o muro que separava o convento da estrada que ia dar na vila. Esperando-a, lá estava o rapaz, que a envolveu num manto e a levou para o mundo e para si.
Três anos depois, a freirinha foi abandonada pelo rapaz, que a trocou por uma camponesa mais jovem. Desiludida, roída pelo remorso, vestiu novamente o hábito e foi bater no convento, pediria perdão, aceitaria qualquer tipo de punição, mas nada tinha a fazer no mundo.
Com surpresa, chegando ao mosteiro, a freira que lhe abriu a porta saudou-a naturalmente, como se ela tivesse saído há pouco para providenciar alguma compra destinada ao culto. Mais surpresa ainda quando encontrou outras freiras, que a tratavam como se nada houvesse acontecido.
Correu à capela: tudo estava em ordem, nenhuma de suas tarefas fora interrompida, alguém a substituíra dia e noite. Procurou a Nossa Senhora ao lado do altar. Lá estavam as suas chaves, esperando por ela. A freirinha olhou o rosto da imagem. Teve a impressão de notar, em seus olhos, uma certa tristeza, mas o lábios pareciam sorrir.
Só então a freirinha percebeu que alguém ocupara o lugar dela na comunidade, varrera a capela, providenciava as flores, acendia as velas, soprava as brasas do turíbulo onde os grãos de incenso seriam queimados, a fumaça esbranquiçada perfumando o espaço colorido pelos vitrais iluminados de cada manhã.
Toda vez que lembro essa freirinha, antes de qualquer tipo de encantamento ou piedade, me pergunto sem achar a resposta: quem inventa essas histórias? Bem, os crentes e devotos dirão que essas histórias não foram inventadas por ninguém, são verdadeiras, e recorrentes.
Há exageros em algumas delas, e além do exagero, há uma lição moral na maioria desses milagres, donde se deve duvidar da sua veracidade, atribuindo as fábulas edificantes ao processo de propaganda, de proselitismo, que religiões, ideologias e até mesmo culturas estabelecidas são obrigadas a apelar, para se difundirem, tornando as suas práticas e mensagens universais.
Sem entrar no mérito da questão, sem interesse em saber o por que e o para que da história, fico assombrado com a beleza dessas lendas de autoria certamente desconhecida e coletiva.
Desde Homero que o homem procura inventar e contar histórias bonitas, sejam elas épicas, românticas, realistas, religiosas, banais ou aterradoras. É natural que nos emocionemos com Ulisses amarrado ao mastro de sua jangada para não sucumbir ao canto das sereias, o drama de Raskolnikov, dividido entre o crime e o castigo, a dúvida de Hamlet, o ciúme de Otelo, a insatisfação de Ema Bovary, o apetite de Pantagruel, a ambiguidade de Capitu.
São histórias também bonitas e que de certa forma nos ensinam alguma coisa. Mas é na relação do ser humano com o sobrenatural que se encontram a beleza em estado puro, o maravilhoso que não se explica porque nada há o que explicar.
Em crônica também antiga, considerei a história de José e Maria a mais bonita de todas as histórias bonitas. Um carpinteiro quase velho, fica sabendo que sua jovem esposa vai ter um filho que não é dele. Aceita a jovem e aceita o filho. Protege os dois, fugindo para o Egito, um rei malvado quer matar a criança.
Mais bela ainda, é a aceitação da jovem, mal saída da infância, que recebe a notícia de que terá um filho. "Mas como? Sou virgem, não conheço homem!" O mensageiro pede que ela não esquente a cabeça, fique na sua, o Senhor é convosco, bendita sois entre as mulheres. E a jovem responde: "Faça-se em mim a sua vontade".
De duas uma. A história é verdadeira, de origem divina -e assim continua aceita por milhões de crentes há mais de dois mil anos. Ou é uma lenda inventada, como a da Gata Borralheira, o Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida no bosque.
Lenda ou história verdadeira, o assombro que a história de Maria e José nos provoca é único, seja por se tratar do nascimento de um Deus entre nós, seja pelo fato de o menino que ainda nasceu ser aceito pelo homem que não é seu pai e pela jovem sem saber que ia ser mãe.
O mês de maio termina amanhã. O adulto descrente de hoje sempre lembra aquelas noites de maio em que, nos anos de seminário, como a freirinha da história, colocava suas chaves todas e tantas -aos pés de Maria. Não reclamo das portas que não se abrem. Sei onde estão as chaves e quem as guarda para mim.


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