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CARLOS HEITOR CONY
Historinhas para o mês que se acaba
Já contei esta historinha em
crônica antiga. Como é produto em domínio público, contada e
recontada há alguns séculos, não
faz mal que a conte mais uma
vez, resumidamente, para ter espaço onde possa contar outras
coisas.
Na Idade Média, num convento
perdido nas montanhas do norte
da Itália, uma freirinha tomava
conta da capela, tinha as chaves
das portas e dos armários, dela
dependia o culto da comunidade
de religiosas.
Indo um dia à vila mais próxima, viu um rapaz que a olhou
com interesse. Voltando ao convento, tentou esquecer o rapaz,
mas logo que pôde voltou à vila,
viu o rapaz novamente -e por
ele se apaixonou.
Decidida a fugir do convento, a
freirinha preparou tudo e, como
se sentia responsável pela capela,
colocou as chaves aos pés de uma
imagem de Nossa Senhora, que ficava ao lado do altar. Rezou, pediu perdão pela fuga e à noite, pulou o muro que separava o convento da estrada que ia dar na vila. Esperando-a, lá estava o rapaz, que a envolveu num manto e
a levou para o mundo e para si.
Três anos depois, a freirinha foi
abandonada pelo rapaz, que a
trocou por uma camponesa mais
jovem. Desiludida, roída pelo remorso, vestiu novamente o hábito
e foi bater no convento, pediria
perdão, aceitaria qualquer tipo
de punição, mas nada tinha a fazer no mundo.
Com surpresa, chegando ao
mosteiro, a freira que lhe abriu a
porta saudou-a naturalmente,
como se ela tivesse saído há pouco
para providenciar alguma compra destinada ao culto. Mais surpresa ainda quando encontrou
outras freiras, que a tratavam como se nada houvesse acontecido.
Correu à capela: tudo estava em
ordem, nenhuma de suas tarefas
fora interrompida, alguém a
substituíra dia e noite. Procurou
a Nossa Senhora ao lado do altar.
Lá estavam as suas chaves, esperando por ela. A freirinha olhou o
rosto da imagem. Teve a impressão de notar, em seus olhos, uma
certa tristeza, mas o lábios pareciam sorrir.
Só então a freirinha percebeu
que alguém ocupara o lugar dela
na comunidade, varrera a capela,
providenciava as flores, acendia
as velas, soprava as brasas do turíbulo onde os grãos de incenso
seriam queimados, a fumaça esbranquiçada perfumando o espaço colorido pelos vitrais iluminados de cada manhã.
Toda vez que lembro essa freirinha, antes de qualquer tipo de encantamento ou piedade, me pergunto sem achar a resposta: quem
inventa essas histórias? Bem, os
crentes e devotos dirão que essas
histórias não foram inventadas
por ninguém, são verdadeiras, e
recorrentes.
Há exageros em algumas delas,
e além do exagero, há uma lição
moral na maioria desses milagres, donde se deve duvidar da
sua veracidade, atribuindo as fábulas edificantes ao processo de
propaganda, de proselitismo, que
religiões, ideologias e até mesmo
culturas estabelecidas são obrigadas a apelar, para se difundirem,
tornando as suas práticas e mensagens universais.
Sem entrar no mérito da questão, sem interesse em saber o por
que e o para que da história, fico
assombrado com a beleza dessas
lendas de autoria certamente desconhecida e coletiva.
Desde Homero que o homem
procura inventar e contar histórias bonitas, sejam elas épicas, românticas, realistas, religiosas, banais ou aterradoras. É natural
que nos emocionemos com Ulisses
amarrado ao mastro de sua jangada para não sucumbir ao canto
das sereias, o drama de Raskolnikov, dividido entre o crime e o
castigo, a dúvida de Hamlet, o
ciúme de Otelo, a insatisfação de
Ema Bovary, o apetite de Pantagruel, a ambiguidade de Capitu.
São histórias também bonitas e
que de certa forma nos ensinam
alguma coisa. Mas é na relação
do ser humano com o sobrenatural que se encontram a beleza em
estado puro, o maravilhoso que
não se explica porque nada há o
que explicar.
Em crônica também antiga,
considerei a história de José e Maria a mais bonita de todas as histórias bonitas. Um carpinteiro
quase velho, fica sabendo que sua
jovem esposa vai ter um filho que
não é dele. Aceita a jovem e aceita
o filho. Protege os dois, fugindo
para o Egito, um rei malvado
quer matar a criança.
Mais bela ainda, é a aceitação
da jovem, mal saída da infância,
que recebe a notícia de que terá
um filho. "Mas como? Sou virgem,
não conheço homem!" O mensageiro pede que ela não esquente a
cabeça, fique na sua, o Senhor é
convosco, bendita sois entre as
mulheres. E a jovem responde:
"Faça-se em mim a sua vontade".
De duas uma. A história é verdadeira, de origem divina -e assim continua aceita por milhões
de crentes há mais de dois mil
anos. Ou é uma lenda inventada,
como a da Gata Borralheira, o
Chapeuzinho Vermelho, A Bela
Adormecida no bosque.
Lenda ou história verdadeira, o
assombro que a história de Maria
e José nos provoca é único, seja
por se tratar do nascimento de
um Deus entre nós, seja pelo fato
de o menino que ainda nasceu ser
aceito pelo homem que não é seu
pai e pela jovem sem saber que ia
ser mãe.
O mês de maio termina amanhã. O adulto descrente de hoje
sempre lembra aquelas noites de
maio em que, nos anos de seminário, como a freirinha da história, colocava suas chaves todas e
tantas -aos pés de Maria. Não
reclamo das portas que não se
abrem. Sei onde estão as chaves e
quem as guarda para mim.
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