|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVRO - LANÇAMENTOS
'Asas da Pomba' expõe sutilezas de Henry James
MARCELO PEN
especial para a Folha
Chegou às livrarias a tradução
de "As Asas da
Pomba", primeiro dos três
últimos romances de Henry James. Virou filme com o infeliz título nacional de "As Asas do
Amor", concorreu ao Oscar e
perdeu. Foi escrito, junto com
"The Ambassadors" e "The Golden Bowl", no início do século 20.
Nesses romances, a ação quase
se paralisa. Mergulhamos no fluxo
de consciência dos personagens
por páginas a fio. O que temos
diante de nós, a chamada realidade, é filtrado por esses "refletores". Nada de novo em James,
mas, naquele momento, a perfeição de sua técnica chegava ao ápice. Teve muitos admiradores, de
Ezra Pound a Clarice Lispector.
Em "As Asas da Pomba", podemos acompanhar esse procedimento técnico na famosa passagem da praça de San Marco.
Momentos antes, a rica herdeira
americana Milly Theale recusara-se a receber seu pretendente, o
jornalista inglês Merton Densher.
A cena se dá quando o rapaz,
preocupado, caminha por Veneza.
Na praça, avista um conterrâneo,
lorde Mark, cuja razão para estar
ali logo se esclarece. É só.
Nada parece suceder, mas na
verdade tudo ocorre. O que importa é o que se engendra por trás
de atos aparentemente banais.
Densher fora convencido pela namorada Kate Croy a cortejar Milly.
O plano era que, ao morrer, Milly
deixasse sua fortuna ao jornalista.
Densher dameja a herdeira. Contudo, ao ver lorde Mark, percebe
por que as portas do "pallazo" de
Milly lhe estavam cerradas: o segundo fora à Veneza contar à moça sobre Densher e Kate.
Em James, os fatos muitas vezes
são observados de viés. Não vemos
lorde Mark contar a verdade a
Milly. É pelo olhar de Densher que
a lógica se forma. E essa revelação
costuma ocorrer em um relance,
num momento fugaz, comprimido, em que tudo se descortina.
Ademais, há uma espécie de reflexo da esfera particular -o drama de Densher- na esfera pública -Veneza. A cidade mostra-se
sombria, com nuvens carregadas e
ventos de açoite. O céu de Veneza
se contrapõe à alma culpada de
Densher. Para ele, a praça de San
Marco é "a sala de estar da Europa, profanada e perplexa por um
revés da sorte".
Ao mesmo tempo íntima e social, a sala de estar é palco perfeito
para os acontecimentos dos romances de James. E que Veneza,
triunfo da civilização situado precariamente sobre um grupo de
ilhotas, ofereça esse palco não é
coincidência. Densher, como Veneza, representa um império decadente, belo e corrompido, cuja
moral é posta à prova pelas forças
naturais, ou pela inocência ultrajada de Milly.
Vista de forma ligeira, essa cena
ilustra bem o que se encontra nos
romances de James, especialmente nos da última fase. Uma riqueza
que só agora, com a tradução, a
maioria dos leitores terá acesso.
Sobretudo se considerada a complexidade do texto. Mesmo a atriz
de "As Asas do Amor", Helena
Bonham Carter, diz ter tropeçado
nas longas frases.
Além disso, é pela primeira vez
que se traduz por aqui um James
dessa safra. Mal comparando seria
como verter, por exemplo, um dos
volumes de "Em Busca do Tempo
Perdido", de Proust.
Armadilhas literárias
Com suas sentenças tortuosas,
extensas digressões, refinamentos
de estilo e de raciocínio, "As Asas
da Pomba" oferece muitas armadilhas ao tradutor. Essa empreitada foi defendida com brio por
Marcos Santarrita, que, de quebra, ainda nos brinda com o saboroso prefácio que James adicionou
à obra.
Se há um reparo a ser feito, está
no respeito excessivo que Santarrita parece ter pelo mestre. Respeito que o fez seguir rigorosamente a
frase de James, a qual mesmo em
inglês causa estranheza. Em português, o resultado nem sempre é
feliz, como nos trechos: "Foi nesse ponto que ela viu completo o
despedaçamento de sua grande
pergunta" ou "Compensou-a na
verdade efetivamente para ele dirigindo-lhe repentinamente a palavra". Detalhes que não comprometem o conjunto, nem devem
assustar o leitor.
Assustado ele deve ficar, porém,
com a péssima capa, com o "lettering" infeliz e com as informações
espalhafatosas (e às vezes equivocadas) das orelhas e da quarta capa
do livro. Por que transformar James numa Rosamunde Pilcher
"avant la lettre"? Venderia melhor assim? Provavelmente não.
James é melhor como é. Com suas
dificuldades e inúmeros deslumbramentos.
Livro: As Asas da Pomba
Autor: Henry James
Tradutor: Marcos Santarrita
Lançamento: Ediouro
Quanto: R$ 29,50 (556 págs.)
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|