São Paulo, sábado, 30 de maio de 1998

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LIVRO - LANÇAMENTOS
'Asas da Pomba' expõe sutilezas de Henry James

MARCELO PEN
especial para a Folha

Chegou às livrarias a tradução de "As Asas da Pomba", primeiro dos três últimos romances de Henry James. Virou filme com o infeliz título nacional de "As Asas do Amor", concorreu ao Oscar e perdeu. Foi escrito, junto com "The Ambassadors" e "The Golden Bowl", no início do século 20.
Nesses romances, a ação quase se paralisa. Mergulhamos no fluxo de consciência dos personagens por páginas a fio. O que temos diante de nós, a chamada realidade, é filtrado por esses "refletores". Nada de novo em James, mas, naquele momento, a perfeição de sua técnica chegava ao ápice. Teve muitos admiradores, de Ezra Pound a Clarice Lispector.
Em "As Asas da Pomba", podemos acompanhar esse procedimento técnico na famosa passagem da praça de San Marco.
Momentos antes, a rica herdeira americana Milly Theale recusara-se a receber seu pretendente, o jornalista inglês Merton Densher. A cena se dá quando o rapaz, preocupado, caminha por Veneza. Na praça, avista um conterrâneo, lorde Mark, cuja razão para estar ali logo se esclarece. É só.
Nada parece suceder, mas na verdade tudo ocorre. O que importa é o que se engendra por trás de atos aparentemente banais. Densher fora convencido pela namorada Kate Croy a cortejar Milly. O plano era que, ao morrer, Milly deixasse sua fortuna ao jornalista. Densher dameja a herdeira. Contudo, ao ver lorde Mark, percebe por que as portas do "pallazo" de Milly lhe estavam cerradas: o segundo fora à Veneza contar à moça sobre Densher e Kate.
Em James, os fatos muitas vezes são observados de viés. Não vemos lorde Mark contar a verdade a Milly. É pelo olhar de Densher que a lógica se forma. E essa revelação costuma ocorrer em um relance, num momento fugaz, comprimido, em que tudo se descortina.
Ademais, há uma espécie de reflexo da esfera particular -o drama de Densher- na esfera pública -Veneza. A cidade mostra-se sombria, com nuvens carregadas e ventos de açoite. O céu de Veneza se contrapõe à alma culpada de Densher. Para ele, a praça de San Marco é "a sala de estar da Europa, profanada e perplexa por um revés da sorte".
Ao mesmo tempo íntima e social, a sala de estar é palco perfeito para os acontecimentos dos romances de James. E que Veneza, triunfo da civilização situado precariamente sobre um grupo de ilhotas, ofereça esse palco não é coincidência. Densher, como Veneza, representa um império decadente, belo e corrompido, cuja moral é posta à prova pelas forças naturais, ou pela inocência ultrajada de Milly.
Vista de forma ligeira, essa cena ilustra bem o que se encontra nos romances de James, especialmente nos da última fase. Uma riqueza que só agora, com a tradução, a maioria dos leitores terá acesso. Sobretudo se considerada a complexidade do texto. Mesmo a atriz de "As Asas do Amor", Helena Bonham Carter, diz ter tropeçado nas longas frases.
Além disso, é pela primeira vez que se traduz por aqui um James dessa safra. Mal comparando seria como verter, por exemplo, um dos volumes de "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust.

Armadilhas literárias
Com suas sentenças tortuosas, extensas digressões, refinamentos de estilo e de raciocínio, "As Asas da Pomba" oferece muitas armadilhas ao tradutor. Essa empreitada foi defendida com brio por Marcos Santarrita, que, de quebra, ainda nos brinda com o saboroso prefácio que James adicionou à obra.
Se há um reparo a ser feito, está no respeito excessivo que Santarrita parece ter pelo mestre. Respeito que o fez seguir rigorosamente a frase de James, a qual mesmo em inglês causa estranheza. Em português, o resultado nem sempre é feliz, como nos trechos: "Foi nesse ponto que ela viu completo o despedaçamento de sua grande pergunta" ou "Compensou-a na verdade efetivamente para ele dirigindo-lhe repentinamente a palavra". Detalhes que não comprometem o conjunto, nem devem assustar o leitor.
Assustado ele deve ficar, porém, com a péssima capa, com o "lettering" infeliz e com as informações espalhafatosas (e às vezes equivocadas) das orelhas e da quarta capa do livro. Por que transformar James numa Rosamunde Pilcher "avant la lettre"? Venderia melhor assim? Provavelmente não. James é melhor como é. Com suas dificuldades e inúmeros deslumbramentos.

Livro: As Asas da Pomba
Autor: Henry James
Tradutor: Marcos Santarrita
Lançamento: Ediouro
Quanto: R$ 29,50 (556 págs.)



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