São Paulo, sábado, 30 de maio de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sinatra, Armênio e o dilema de Clarice

ALBERTO DINES
Colunista da Folha


Olhos azuis, ambos apaixonados pela música, carisma, charme, longevos (um muito mais do que o outro, certamente). As semelhanças ficam nisso, porque um era nova-iorquino e o outro é baiano, quase mineiro. Um foi militante e líder comunista durante quase meio século, o outro, embora tivesse circulado junto ao clã liberal dos Kennedy, estava longe de ser chamado de progressista.
Ninguém mais diferente de Frank Sinatra do que Armênio Guedes e, no entanto, a voz e a lembrança de um serviu de fundo musical da festa de 80 anos de outro, dias atrás, em São Paulo. A remissão não se fez apenas pelas melodias, pela afinada "Shining Brass Band", pelas "crooners" vestidas de longo, pelo pares dançando "cheek to cheek" (como deve ser quando se dança aos pares).
Festejou-se o tempo e os tempos. Sem saudades nem cortes, com gosto e confiança. O espírito afirmativo do "My Way", versão amena do "Cantigo Negro" de José Régio, criou um clima de serenidade e convicção. Do PT ao PSDB, com PPS, PSB e PMDB pelo meio, de ninguém foi exigida a carteirinha, muito menos diploma de pertencimentos e filiações.
As esquerdas desnorteadas, segundo a "imprensa burguesa" (na classificação de Lula da Silva), estavam ali, calejadas e ponderadas, reunidas em torno de um socialista e democrata que, no telão, dizia: "melhorou e vai melhorar...". Parte dos leitores talvez jamais ouviu falar em Armênio Guedes, daí a sua importância -nesse país de celebrados e celebrações milita uma legião de heróis sossegados, afincada na idéia de recuperar, fazer, avançar, qualificar. Recusam as ruidosas intervenções, não se fascinam pelo efeito da exposição pública. Convencem por osmose, induzem pelo exemplo, persuadem pelo convívio -mestres.
Armênio tem 60 anos de jornalismo, seguramente é o decano das nossas redações (Barbosa Lima Sobrinho, 20 anos mais velho, escreve seus artigos dominicais em casa). Da "Voz Operária" à "Gazeta Mercantil", a mesma preocupação com cultura, com os valores permanentes da humanidade, a diligência em distinguir novidades de progresso.
Em entrevista a Mauro Malin na mais recente edição do "Observatório da Imprensa" (versão on-line), foi definitivo: "O jornalismo se tornou incapaz de falar de coisas boas para melhorá-las". Mais do que otimista, um crente.
Um dos primeiros optantes da linha eurocomunista foi um dos agentes da virada do PCB na direção da atuação política e das alianças com outras forças (desde que comprometidas com a democratização). Opções hoje corriqueiras, embora atendam mais aos instintos eleitorais do que à fé interior.
Jovial e manso, disposto e disponível, reservado e aberto. Combinações raras que explicam as quase três centenas de pessoas que foram à festa para reencontrar uma figura, um símbolo, um estado de espírito.
Armênio remete-me a um belo texto no "Caderno 2" do "Estadão" (19/5/98), assinado por José Castello, um dos expoentes de um gênero em extinção, o jornalismo cultural. Em "Resposta Tardia a Clarice Lispector", esse carioca hoje curitibano reproduz o tópico final de uma crônica sabática da grande escritora no "Jornal do Brasil" : "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la? Que é que estou exatamente querendo saber?".
Logo lembrei da cena: dezembro de 1969, sexta-feira, redação agitada mas sem a azáfama de antecipar tantas edições como hoje. Clarice telefona, atendo. "Se não tiver tempo, leia apenas o fim da minha crônica." Li e entendi o recado. Lá estava ela admoestando novamente. A mim e a milhares de outros. Não importa o objeto da carinhosa bronca, mas o teor de uma das questões que hoje, 30 anos depois, ouso considerar como crucial na galeria de dúvidas do homem contemporâneo.
O que é desperdício -entregar-se ou encolher-se, expor-se ou confinar-se, abrir a guarda ou defender-se? Despreocupada com o desgaste inevitável, Clarice não discute as convocações, nem tenta hierarquizá-las. Não propõe um medidor ou qualificador de empenhos.
Neste mundo sem dores-de-mundo, onde a farmacologia substitui-se à filosofia, a globalização da angústia mudou sua própria natureza, coisificou-a. Profissão de fé foi substituída por palavra de ordem. Reflexão, hoje, é pensata (rima com errata). As sucessivas ondas de certezas entronizaram a descontinuidade. Todos ficaram roucos e moucos.
Mudar tornou-se mais importante do que melhorar. Perplexa com a própria perplexidade, Clarice assume a dúvida, Armênio, os avanços. Ao som de Sinatra, quem diria, que acabou trilha sonora de uma festa de bravos guerreiros.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.