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Sinatra, Armênio e o dilema de Clarice
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
Olhos azuis, ambos apaixonados pela música, carisma,
charme, longevos (um muito
mais do que o outro, certamente). As semelhanças ficam
nisso, porque um era nova-iorquino e o outro é baiano, quase mineiro. Um foi militante e
líder comunista durante quase
meio século, o outro, embora
tivesse circulado junto ao clã
liberal dos Kennedy, estava
longe de ser chamado de progressista.
Ninguém mais diferente de
Frank Sinatra do que Armênio
Guedes e, no entanto, a voz e a
lembrança de um serviu de
fundo musical da festa de 80
anos de outro, dias atrás, em
São Paulo. A remissão não se
fez apenas pelas melodias, pela
afinada "Shining Brass Band",
pelas "crooners" vestidas de
longo, pelo pares dançando
"cheek to cheek" (como deve
ser quando se dança aos pares).
Festejou-se o tempo e os tempos. Sem saudades nem cortes,
com gosto e confiança. O espírito afirmativo do "My Way",
versão amena do "Cantigo Negro" de José Régio, criou um
clima de serenidade e convicção. Do PT ao PSDB, com PPS,
PSB e PMDB pelo meio, de
ninguém foi exigida a carteirinha, muito menos diploma de
pertencimentos e filiações.
As esquerdas desnorteadas,
segundo a "imprensa burguesa" (na classificação de Lula
da Silva), estavam ali, calejadas e ponderadas, reunidas em
torno de um socialista e democrata que, no telão, dizia: "melhorou e vai melhorar...". Parte
dos leitores talvez jamais ouviu falar em Armênio Guedes,
daí a sua importância -nesse
país de celebrados e celebrações milita uma legião de heróis sossegados, afincada na
idéia de recuperar, fazer,
avançar, qualificar. Recusam
as ruidosas intervenções, não
se fascinam pelo efeito da exposição pública. Convencem
por osmose, induzem pelo
exemplo, persuadem pelo convívio -mestres.
Armênio tem 60 anos de jornalismo, seguramente é o decano das nossas redações (Barbosa Lima Sobrinho, 20 anos
mais velho, escreve seus artigos
dominicais em casa). Da "Voz
Operária" à "Gazeta Mercantil", a mesma preocupação
com cultura, com os valores
permanentes da humanidade,
a diligência em distinguir novidades de progresso.
Em entrevista a Mauro Malin na mais recente edição do
"Observatório da Imprensa"
(versão on-line), foi definitivo:
"O jornalismo se tornou incapaz de falar de coisas boas para melhorá-las". Mais do que
otimista, um crente.
Um dos primeiros optantes
da linha eurocomunista foi um
dos agentes da virada do PCB
na direção da atuação política
e das alianças com outras forças (desde que comprometidas
com a democratização). Opções hoje corriqueiras, embora
atendam mais aos instintos
eleitorais do que à fé interior.
Jovial e manso, disposto e
disponível, reservado e aberto.
Combinações raras que explicam as quase três centenas de
pessoas que foram à festa para
reencontrar uma figura, um
símbolo, um estado de espírito.
Armênio remete-me a um belo texto no "Caderno 2" do "Estadão" (19/5/98), assinado por
José Castello, um dos expoentes de um gênero em extinção,
o jornalismo cultural. Em
"Resposta Tardia a Clarice Lispector", esse carioca hoje curitibano reproduz o tópico final
de uma crônica sabática da
grande escritora no "Jornal do
Brasil" : "Gastar a vida é
usá-la ou não usá-la? Que é
que estou exatamente querendo saber?".
Logo lembrei da cena: dezembro de 1969, sexta-feira, redação agitada mas sem a azáfama de antecipar tantas edições como hoje. Clarice telefona, atendo. "Se não tiver tempo, leia apenas o fim da minha
crônica." Li e entendi o recado.
Lá estava ela admoestando
novamente. A mim e a milhares de outros. Não importa o
objeto da carinhosa bronca,
mas o teor de uma das questões que hoje, 30 anos depois,
ouso considerar como crucial
na galeria de dúvidas do homem contemporâneo.
O que é desperdício -entregar-se ou encolher-se, expor-se
ou confinar-se, abrir a guarda
ou defender-se? Despreocupada com o desgaste inevitável,
Clarice não discute as convocações, nem tenta hierarquizá-las. Não propõe um medidor ou qualificador de empenhos.
Neste mundo sem dores-de-mundo, onde a farmacologia substitui-se à filosofia,
a globalização da angústia
mudou sua própria natureza,
coisificou-a. Profissão de fé foi
substituída por palavra de ordem. Reflexão, hoje, é pensata
(rima com errata). As sucessivas ondas de certezas entronizaram a descontinuidade. Todos ficaram roucos e moucos.
Mudar tornou-se mais importante do que melhorar. Perplexa com a própria perplexidade, Clarice assume a dúvida,
Armênio, os avanços. Ao som
de Sinatra, quem diria, que
acabou trilha sonora de uma
festa de bravos guerreiros.
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