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São Paulo, segunda-feira, 30 de junho de 2003

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NELSON ASCHER

Bem-vindos à utopia

Que continente, a boa e velha Europa! Catedrais góticas, basílicas românicas, arenas romanas e templos gregos, todos deslumbrantes, se bem que nem sempre decentemente conservados. Museus cujos acervos maravilhosos têm sobrevivido inclusive à incompetência administrativa e à alocação meio aleatória de recursos. Cidades com tantas camadas sobrepostas de história, que os capítulos reduzidos a pó por essa mesma história nem fazem muita falta.
Onde quer que se vá, a culinária, que já teve dias mais gloriosos, ainda é magnífica, embora careça, em cada país, de variedade. E as paisagens então! Belíssimas, apesar de terem sido quase todas alteradas vezes sem conta por mãos humanas. E vá lá que quem goste de areia branca ache pedregosas suas praias ou que, descontando o natal nevado, três meses sem sol digno de nota podem dar nos nervos. Convenhamos, porém, que se trata de um continente e tanto.
Suas ruas são exemplarmente limpas, exceto, é claro, nas ocasiões nem tão raras quando os lixeiros e o restante do serviço público, declarando guerra a seus concidadãos, entram em greve, paralisando, no entretempo, os transportes urbanos e os trens expressos. Mas, já que os europeus dizem que deixaram de lado o egoísmo das soluções individualistas, como o automóvel, em prol das coletivas, a vontade dos metroviários é suficiente para que países inteiros simplesmente parem. Por sorte, como as contas são coletivamente compartilhadas, a perda é total e ninguém ganha nada.
Tampouco se deve esquecer a "joie de vivre". Longas jornadas de trabalho? Vontade de enriquecer? Produtividade? Nem pensar. Alguém, em sã consciência, endossa esse desvario praticado do lado errado do oceano Atlântico? Durante o verão, as pessoas tomam sol nos parques onde nem a onipresença de excrementos caninos atrapalha o que há de mais sério na vida: a sesta. Depois elas se reúnem à beira-rio para beber vinho e dançar tango ou salsa e, se não o fazem num bom café ou num salão apropriado, é porque, independentemente de sua idade, o Estado as trata como crianças, encarregando-se das despesas adultas (habitação, saúde, escola, transporte). O que sobra, depois que os impostos lhe confiscaram a carteira, não passa de uma mesada com a qual cada beneficiário poderá comer duas vezes por mês num restaurante que preste ou comprar cigarros. É um ou o outro.
A fartura é tanta que não faltam consumidores e há, portanto, filas em toda parte. Ninguém ouse pensar que a tentativa de pôr ordem nas forças caóticas do mercado tenha resultado num desencontro crescente entre oferta e procura ou, pensamento ainda menos cabível, que, graças ao contrato social firmado entre as elites administrativas e as sindicais, como ninguém pode ser demitido, quase ninguém acaba sendo contratado. Fosse essa a realidade, padarias, açougues, confeitarias, bares, lanchonetes, lojas, livrarias etc. capazes de empregar, digamos, dez funcionários, precisariam se virar com apenas dois ou três, nenhum deles demasiado disposto a doar seu sangue proletário ao vampiro capitalista, que é como por aqui se qualifica o trabalho.
A democracia que, como se sabe, foi inventada nestas terras prevalece em toda a sua extensão. Todo mundo é democraticamente eleito, salvo os burocratas de carreira que, oriundos de grupos sociais hereditários e fechados, reservam para si, após cursarem as mesmas escolas exclusivas, o acesso privilegiado às posições de prestígio. Curiosamente, os cidadãos, que em geral sabem direito quais são os mais importantes entre estes, ignoram mesmo o nome da maioria de seus deputados e senadores. Talvez isso tenha algo a ver com o fato de que, enquanto o papel dos parlamentares, em todo caso escolhidos não individualmente, mas por meio de listas fornecidas por partidos que já negociaram previamente os futuros cargos, resume-se a endossarem, com alguma discussão pro forma, o que o executivo quiser, as decisões que realmente contam são tomadas pela burocracia não eleita.
Esse modelo é tão funcional que foi adotado de forma aperfeiçoada pela administração, situada em Bruxelas, da União Européia. Se a maioria dos parlamentos europeus alcançou gradualmente sua irrelevância atual, o Parlamento Europeu, situado em Estrasburgo, já nasceu como uma ficção povoada de gente que se dá uma importância que não tem. Entre os aperfeiçoamentos que caracterizam as estruturas macroeuropéias, o melhor é, sem dúvida, o seguinte: seus escândalos financeiros, que se resolvem frequentemente com a demissão dos "whistle-blowers", isto é, daqueles que os denunciaram, mal chegam às imprensas nacionais (e muito menos às televisões estatalmente controladas), pois estas, entre a caricatura de um Bush sanguinário e a denúncia dos piores, aliás, dos únicos criminosos do planeta, os judeus, desculpem-me, quero dizer os sionistas, só conseguem, se tanto, espaço para comentar algum escandalozinho sexual de província.
Um dos grandes trunfos da Europa, que vive há décadas numa utopia oficialmente realizada, é que ela dispõe não de forças armadas como as que teriam sido necessárias para salvar 250 mil vidas em seu quintal balcânico, mas de um autêntico exército de intelectuais orgânicos que, como Habermas, Derrida ou Baudrillard, fazem jus a seu salário convencendo, por exemplo, brasileiros desavisados de que, para chegar ao melhor dos mundos possíveis, basta seguir suas ilegíveis instruções.


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