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NELSON ASCHER
Bem-vindos à utopiaQue continente, a boa e velha Europa! Catedrais góticas, basílicas românicas, arenas
romanas e templos gregos, todos
deslumbrantes, se bem que nem
sempre decentemente conservados. Museus cujos acervos maravilhosos têm sobrevivido inclusive
à incompetência administrativa e
à alocação meio aleatória de recursos. Cidades com tantas camadas sobrepostas de história, que os
capítulos reduzidos a pó por essa
mesma história nem fazem muita
falta.
Onde quer que se vá, a culinária, que já teve dias mais gloriosos, ainda é magnífica, embora
careça, em cada país, de variedade. E as paisagens então! Belíssimas, apesar de terem sido quase
todas alteradas vezes sem conta
por mãos humanas. E vá lá que
quem goste de areia branca ache
pedregosas suas praias ou que,
descontando o natal nevado, três
meses sem sol digno de nota podem dar nos nervos. Convenhamos, porém, que se trata de um
continente e tanto.
Suas ruas são exemplarmente
limpas, exceto, é claro, nas ocasiões nem tão raras quando os lixeiros e o restante do serviço público, declarando guerra a seus
concidadãos, entram em greve,
paralisando, no entretempo, os
transportes urbanos e os trens expressos. Mas, já que os europeus
dizem que deixaram de lado o
egoísmo das soluções individualistas, como o automóvel, em prol
das coletivas, a vontade dos metroviários é suficiente para que
países inteiros simplesmente parem. Por sorte, como as contas são
coletivamente compartilhadas, a
perda é total e ninguém ganha
nada.
Tampouco se deve esquecer a
"joie de vivre". Longas jornadas
de trabalho? Vontade de enriquecer? Produtividade? Nem pensar.
Alguém, em sã consciência, endossa esse desvario praticado do
lado errado do oceano Atlântico?
Durante o verão, as pessoas tomam sol nos parques onde nem a
onipresença de excrementos caninos atrapalha o que há de mais
sério na vida: a sesta. Depois elas
se reúnem à beira-rio para beber
vinho e dançar tango ou salsa e,
se não o fazem num bom café ou
num salão apropriado, é porque,
independentemente de sua idade,
o Estado as trata como crianças,
encarregando-se das despesas
adultas (habitação, saúde, escola,
transporte). O que sobra, depois
que os impostos lhe confiscaram a
carteira, não passa de uma mesada com a qual cada beneficiário
poderá comer duas vezes por mês
num restaurante que preste ou
comprar cigarros. É um ou o outro.
A fartura é tanta que não faltam consumidores e há, portanto,
filas em toda parte. Ninguém ouse pensar que a tentativa de pôr
ordem nas forças caóticas do mercado tenha resultado num desencontro crescente entre oferta e
procura ou, pensamento ainda
menos cabível, que, graças ao
contrato social firmado entre as
elites administrativas e as sindicais, como ninguém pode ser demitido, quase ninguém acaba
sendo contratado. Fosse essa a
realidade, padarias, açougues,
confeitarias, bares, lanchonetes,
lojas, livrarias etc. capazes de empregar, digamos, dez funcionários, precisariam se virar com
apenas dois ou três, nenhum deles
demasiado disposto a doar seu
sangue proletário ao vampiro capitalista, que é como por aqui se
qualifica o trabalho.
A democracia que, como se sabe, foi inventada nestas terras
prevalece em toda a sua extensão.
Todo mundo é democraticamente eleito, salvo os burocratas de
carreira que, oriundos de grupos
sociais hereditários e fechados, reservam para si, após cursarem as
mesmas escolas exclusivas, o acesso privilegiado às posições de
prestígio. Curiosamente, os cidadãos, que em geral sabem direito
quais são os mais importantes entre estes, ignoram mesmo o nome
da maioria de seus deputados e
senadores. Talvez isso tenha algo
a ver com o fato de que, enquanto
o papel dos parlamentares, em todo caso escolhidos não individualmente, mas por meio de listas
fornecidas por partidos que já negociaram previamente os futuros
cargos, resume-se a endossarem,
com alguma discussão pro forma,
o que o executivo quiser, as decisões que realmente contam são
tomadas pela burocracia não
eleita.
Esse modelo é tão funcional que
foi adotado de forma aperfeiçoada pela administração, situada
em Bruxelas, da União Européia.
Se a maioria dos parlamentos europeus alcançou gradualmente
sua irrelevância atual, o Parlamento Europeu, situado em Estrasburgo, já nasceu como uma
ficção povoada de gente que se dá
uma importância que não tem.
Entre os aperfeiçoamentos que
caracterizam as estruturas macroeuropéias, o melhor é, sem dúvida, o seguinte: seus escândalos
financeiros, que se resolvem frequentemente com a demissão dos
"whistle-blowers", isto é, daqueles
que os denunciaram, mal chegam
às imprensas nacionais (e muito
menos às televisões estatalmente
controladas), pois estas, entre a
caricatura de um Bush sanguinário e a denúncia dos piores, aliás,
dos únicos criminosos do planeta,
os judeus, desculpem-me, quero
dizer os sionistas, só conseguem,
se tanto, espaço para comentar
algum escandalozinho sexual de
província.
Um dos grandes trunfos da Europa, que vive há décadas numa
utopia oficialmente realizada, é
que ela dispõe não de forças armadas como as que teriam sido
necessárias para salvar 250 mil
vidas em seu quintal balcânico,
mas de um autêntico exército de
intelectuais orgânicos que, como
Habermas, Derrida ou Baudrillard, fazem jus a seu salário convencendo, por exemplo, brasileiros desavisados de que, para chegar ao melhor dos mundos possíveis, basta seguir suas ilegíveis
instruções.
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