São Paulo, quarta-feira, 30 de junho de 2004

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ANÁLISE

Falta irreverência a "Senhora do Destino"

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como é de praxe, a primeira fase de "Senhora do Destino", a nova novela das oito da Globo, situa didaticamente os personagens na geografia e na história do Brasil. A novela apresenta qualidade técnica primorosa, mas não tem a irreverência que marcou o gênero nos seus melhores anos -ironicamente os anos de ditadura e censura.
É 1968. Estamos no Rio às margens do rio São Francisco. Mais precisamente, é 13 de dezembro, dia do AI-5, ato que marcou o endurecimento do regime militar em meio a manifestações de rua.
O tom documental engana. Os dois cenários aparecem com sinal invertido ao que tinham na época. Cenas de violência nas ruas da cinza metrópole carioca se alternam a tomadas de um Nordeste glamouroso. A fotografia cinematográfica garante uma luz dourada em lindas paisagens bucólicas.
No ano em que "Senhora do Destino" começa, estava no ar "Beto Rockfeller", novela de Bráulio Pedroso, dirigida por Lima Duarte e produzida por Cassiano Gabus Mendes na então TV Tupi.
"Beto" é precursora de "Senhora", pois inaugurou as novelas gravadas em locação, com personagens que falam linguagem coloquial, tratam de temas da moda, sem dispensar alguma ironia. Ele é herói sem caráter. Ela é politicamente correta.
A trajetória de Josefa, senhora da alta sociedade, que homenageia a proprietária do "Correio da Manhã", jornal carioca de oposição, é de honrosa derrota histórica. Merecem foto, com direito a legenda, personagens com quem contracena: o general Costa e Silva, o governador Carlos Lacerda e o jornalista Paulo Francis, todos mortos.
Já a trajetória da pobre Maria do Carmo, mulher do povo, de fibra, já sabemos, será de honrosa vitória, como foi a do presidente Lula e a do próprio autor da novela.
Do realismo, a novela resvala para o "reality show" ao apresentar Marília Gabriela no papel de Josefa. Interessante que ninguém tenha pensado em escalar uma lavadeira nordestina para o papel da jovem mãe de cinco filhos, papel que Carolina Dieckman desempenha com leveza.
Viramos uma página de nossa história. O que em anos passados soava provocativo hoje aparece como morno. A começar pelo uso surrado do documentário. Aguardamos a desenvoltura de Suzana Vieira na segunda fase.


Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP

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