São Paulo, quarta-feira, 30 de junho de 2004

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LITERATURA

Obra poética mais extensa de Haroldo de Campos, escrita entre 1963 e 1973, é relançada pela editora 34

"Galáxias" é livro para ser "freqüentado"

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA

A obra poética mais extensa de Haroldo de Campos, "Galáxias", que é, além disso, uma de suas mais intensas, foi escrita entre 1963 e 1973 como (nas palavras do autor) "uma insinuação épica que se resolveu numa epifânica" (o volume está sendo relançado agora pela editora 34 e vem acompanhado do CD "Isto Não É um Livro de Viagem").
Se, com essa afirmação, o poeta revelava que, conforme se desenvolvia, uma intenção originalmente narrativa e linear se consolidara num conjunto lírico sem verdadeiro começo nem fim e com uma pluralidade de centros, também vale a pena assinalar que seu caráter de diário de bordo e de livro de ensaios não apenas se mantém integralmente como se associa a um outro, o de um mar de estórias e histórias.
O volume se compõe de 50 capítulos ou fragmentos vazados numa espécie de poesia em prosa que não é, no entanto, uma prosa comum, pois, mais do que um mero discorrer enriquecido de recursos poéticos, cada qual deles se apresenta como um único e vastíssimo verso hipermultissilábico no qual as palavras e expressões vão se formando a partir das anteriores e se dissolvendo nas seguintes.
E, embora os capítulos possam ser lidos em qualquer ordem, eles se iluminam uns aos outros, discutem entre si e convertem a coerência estilística em seu fio condutor.
O assunto ou tema de "Galáxias" se resume numa única palavra: tudo. O autor relembra, exemplifica e discute o que leu, viu, ouviu e viveu.
Num momento está falando do romance escrito por uma dama da corte no Japão medieval, em outro, relata o encontro com um poeta em alguma capital, num terceiro transforma a teoria literária na personagem central de um meta-conto de fadas ou de uma fábula sobre o fabular. E assim por diante. O apetite temático de Haroldo de Campos era tamanho que somente sua versatilidade criativa conseguia dar conta de tanta variedade.
A descrição acima talvez sugira que a obra em questão é complicada e impenetrável. E sua leitura sem dúvida requer um tipo diferente de esforço, só que menos devido à aparente ilegibilidade do que por causa de uma oralidade que não raro se mostra hipnótica. Tão logo internalize as convenções do texto, o leitor corre o risco de ser levado por ele. A rigor, "Galáxias" não é um livro para ser lido, mas sim frequentado.
E tal frequentação se tornará realmente recompensadora quando o leitor perceber que muito do que a princípio lhe parecia sério e complicado é, antes de mais nada, cômico e satírico, pois (algo que boa parte de seus críticos não entendeu até hoje) a poesia de Haroldo está carregada de um humor peculiar. Os eruditismos, o uso de expressões arcaicas, raras ou especializadas, a criação, através da montagem, de novas palavras eram para ele uma forma extremamente lúdica de demonstrar quão maleável era sua matéria-prima verbal.
A satisfação que ele encontrava em dobrá-la e desdobrá-la, em reformá-la e deformá-la a seu bel-prazer, era principalmente decorrência da liberdade e desenvoltura com que somente um poeta de verdade é capaz de tratar sua própria língua.


GALÁXIAS. Autor: Haroldo de Campos. Editora: 34. Quanto: R$ 45 (o volume vem acompanhado do CD "Isto Não É um Livro de Viagem").


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