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MARCELO COELHO
A estrutura viscosa do Orkut
Onze pessoas me acham
confiável. Umas nove dizem
que sou legal. Cinco admitem que
sou sexy. Além disso, conto com
um grupo de 13 fãs. Não é tão
pouco, considerando que entrei
no Orkut só há algumas semanas.
Funciona assim: você recebe um
e-mail de algum amigo ou conhecido, convidando-o a participar
do site. Você clica, se cadastra e
encontra a página da pessoa que
o convidou. Lá está a foto do seu
amigo ou amiga, com a idade, o
estado civil, as preferências políticas, religiosas, musicais etc. Além
disso, na mesma página, você vê a
foto de todos os amigos do seu
amigo -clicando, você chega até
eles também.
Mas não precisa fazer isso já.
Contente-se em responder no
quadradinho do "yes" à pergunta: "Is Fulano your friend?". E
pronto! Agora você também pertence ao grupo dos amigos de Fulano. Iniciam-se as suas experiências no Orkut. Em poucos dias,
outros convites irão chegar.
Até aqui, tudo parece apenas
um dispositivo no gênero "corrente da felicidade", servindo para
troca de endereços eletrônicos. As
coisas ficam um pouco mais interessantes em seguida.
É que seus amigos começam a
opinar sobre você. Na sua página,
aparecem algumas "cotações",
como as estrelas que os críticos de
cinema dão para os filmes em
cartaz. Que eu saiba, há três características sendo avaliadas. O
item confiabilidade (que se traduz em carinhas sorridentes agregadas ao lado do seu nome), o seu
grau de atratividade sexual (coraçõezinhos) e o quanto você é divertido ("cool", em inglês: cubinhos de gelo).
Chega o momento de dar o troco -e classificar seus amigos conforme esses quesitos também. Situações "quentes" podem rolar.
Como usuário do Orkut, você tem
a prerrogativa de assinalar, dentre as pessoas da sua turma,
aquelas com quem toparia sair
para um encontro romântico;
mais do que isso, pode dizer que é
"fissurado" em determinada pessoa (em inglês, é "to have a crush
on someone"). Essa pessoa não
saberá disso. A não ser que ela
também tenha declarado o mesmo a seu respeito.
No Orkut se misturam, assim,
as características do correio elegante, da confraria do elogio mútuo, dos grupos de discussão, dos
fotologs e de outros mecanismos
de relacionamento interpessoal
possibilitados pela internet. No
Brasil, virou uma febre: o país é o
que reúne mais participantes no
site, superando os americanos.
O sistema oferece, claro, muitas
coisas legais. Encontra-se o paradeiro de pessoas queridas, conhece-se mais a respeito de nossos
próprios amigos, tem-se acesso a
grupos de informação sobre todo
tipo de assunto; por enquanto,
não há muitos anúncios, nem o
número de spams em minha caixa postal aumentou significativamente.
O objetivo do Orkut, entretanto,
é o mesmo de todo tipo de acontecimento em curso na internet. Explicaram-me uma vez que a principal preocupação de provedores,
sites e congêneres resume-se apenas numa coisa: importa conseguir que o usuário passe cada vez
mais tempo diante do computador. As salas de chat, os blogs, as
enciclopédias, horóscopos on line... Tudo, enfim, que é oferecido
na rede -e aqui o termo "rede" é
bem apropriado- destina-se a
produzir um público virtual cativo, grudado ali, exposto à publicidade, pronto a consumir num clique.
O Orkut funciona melhor do
que muitas outras coisas para
atingir esse objetivo, pois alia o
interesse das relações pessoais aos
mecanismos psicológicos do jogo,
do bingo ou do caça-níqueis.
Quantas estrelinhas vou ganhar?
Quantas pessoas eu convido?
Quem tem mais pessoas no seu
grupo de amigos: eu, que sou uma
pessoa legal, ou o canalha X, a
quem detesto? Desse modo, as relações afetivas podem terminar
anabolizadas pela competitividade: constrói-se uma espécie de
ibope pessoal, uma bolsa de valores na escala do indivíduo.
Não estará totalmente errado
quem disser que na vida cotidiana é sempre assim, e que o Orkut
simplesmente digitalizou a lógica
que ordena as relações de qualquer pessoa com seus semelhantes. O problema não está no fato
de que possamos agir de forma
mais ou menos interesseira, mais
ou menos sincera, mais ou menos
vaidosa, no Orkut ou fora dele. O
que mais me assusta nesses fenômenos da internet, como eu estava dizendo, é sua estrutura viciante, viscosa: como num jogo de
azar, exige-se um esforço mínimo
e repetitivo do usuário, que é sempre espicaçado pelo fator surpresa: "Será que tem alguma novidade no site? Quem mais me convidou? O que de novo escreveram
no livro de recados?" -coisas
desse tipo.
Procura-se, e oferece-se, um
bem real e outro imaginário.
Amizades legítimas podem ser
alimentadas via Orkut, como pelo
telefone ou pelas cartas manuscritas; mas também se pode buscar no site apenas a estrelinha, a
cifra, o distintivo -as fichas de
plástico da amizade. É assim que
um espírito de cordialidade brasileira -o tapinha nas costas
etc.- sobrevive também no meio
dessa modernidade toda e pode
ser uma explicação para o sucesso
do site entre nós.
Uma última observação. Aquilo
que procuramos no varejo -nosso ibope- é aquilo que os próprios sites e provedores procuram
no atacado; o indivíduo enredado
no Orkut imita, sem saber, os seus
manipuladores. O jogo não se
equilibra com isso, mas tudo,
mais uma vez, fica parecendo recíproco.
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