São Paulo, quarta-feira, 30 de junho de 2004

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MARCELO COELHO

A estrutura viscosa do Orkut

Onze pessoas me acham confiável. Umas nove dizem que sou legal. Cinco admitem que sou sexy. Além disso, conto com um grupo de 13 fãs. Não é tão pouco, considerando que entrei no Orkut só há algumas semanas.
Funciona assim: você recebe um e-mail de algum amigo ou conhecido, convidando-o a participar do site. Você clica, se cadastra e encontra a página da pessoa que o convidou. Lá está a foto do seu amigo ou amiga, com a idade, o estado civil, as preferências políticas, religiosas, musicais etc. Além disso, na mesma página, você vê a foto de todos os amigos do seu amigo -clicando, você chega até eles também.
Mas não precisa fazer isso já. Contente-se em responder no quadradinho do "yes" à pergunta: "Is Fulano your friend?". E pronto! Agora você também pertence ao grupo dos amigos de Fulano. Iniciam-se as suas experiências no Orkut. Em poucos dias, outros convites irão chegar.
Até aqui, tudo parece apenas um dispositivo no gênero "corrente da felicidade", servindo para troca de endereços eletrônicos. As coisas ficam um pouco mais interessantes em seguida.
É que seus amigos começam a opinar sobre você. Na sua página, aparecem algumas "cotações", como as estrelas que os críticos de cinema dão para os filmes em cartaz. Que eu saiba, há três características sendo avaliadas. O item confiabilidade (que se traduz em carinhas sorridentes agregadas ao lado do seu nome), o seu grau de atratividade sexual (coraçõezinhos) e o quanto você é divertido ("cool", em inglês: cubinhos de gelo).
Chega o momento de dar o troco -e classificar seus amigos conforme esses quesitos também. Situações "quentes" podem rolar. Como usuário do Orkut, você tem a prerrogativa de assinalar, dentre as pessoas da sua turma, aquelas com quem toparia sair para um encontro romântico; mais do que isso, pode dizer que é "fissurado" em determinada pessoa (em inglês, é "to have a crush on someone"). Essa pessoa não saberá disso. A não ser que ela também tenha declarado o mesmo a seu respeito.
No Orkut se misturam, assim, as características do correio elegante, da confraria do elogio mútuo, dos grupos de discussão, dos fotologs e de outros mecanismos de relacionamento interpessoal possibilitados pela internet. No Brasil, virou uma febre: o país é o que reúne mais participantes no site, superando os americanos.
O sistema oferece, claro, muitas coisas legais. Encontra-se o paradeiro de pessoas queridas, conhece-se mais a respeito de nossos próprios amigos, tem-se acesso a grupos de informação sobre todo tipo de assunto; por enquanto, não há muitos anúncios, nem o número de spams em minha caixa postal aumentou significativamente.
O objetivo do Orkut, entretanto, é o mesmo de todo tipo de acontecimento em curso na internet. Explicaram-me uma vez que a principal preocupação de provedores, sites e congêneres resume-se apenas numa coisa: importa conseguir que o usuário passe cada vez mais tempo diante do computador. As salas de chat, os blogs, as enciclopédias, horóscopos on line... Tudo, enfim, que é oferecido na rede -e aqui o termo "rede" é bem apropriado- destina-se a produzir um público virtual cativo, grudado ali, exposto à publicidade, pronto a consumir num clique.
O Orkut funciona melhor do que muitas outras coisas para atingir esse objetivo, pois alia o interesse das relações pessoais aos mecanismos psicológicos do jogo, do bingo ou do caça-níqueis. Quantas estrelinhas vou ganhar? Quantas pessoas eu convido? Quem tem mais pessoas no seu grupo de amigos: eu, que sou uma pessoa legal, ou o canalha X, a quem detesto? Desse modo, as relações afetivas podem terminar anabolizadas pela competitividade: constrói-se uma espécie de ibope pessoal, uma bolsa de valores na escala do indivíduo.
Não estará totalmente errado quem disser que na vida cotidiana é sempre assim, e que o Orkut simplesmente digitalizou a lógica que ordena as relações de qualquer pessoa com seus semelhantes. O problema não está no fato de que possamos agir de forma mais ou menos interesseira, mais ou menos sincera, mais ou menos vaidosa, no Orkut ou fora dele. O que mais me assusta nesses fenômenos da internet, como eu estava dizendo, é sua estrutura viciante, viscosa: como num jogo de azar, exige-se um esforço mínimo e repetitivo do usuário, que é sempre espicaçado pelo fator surpresa: "Será que tem alguma novidade no site? Quem mais me convidou? O que de novo escreveram no livro de recados?" -coisas desse tipo.
Procura-se, e oferece-se, um bem real e outro imaginário. Amizades legítimas podem ser alimentadas via Orkut, como pelo telefone ou pelas cartas manuscritas; mas também se pode buscar no site apenas a estrelinha, a cifra, o distintivo -as fichas de plástico da amizade. É assim que um espírito de cordialidade brasileira -o tapinha nas costas etc.- sobrevive também no meio dessa modernidade toda e pode ser uma explicação para o sucesso do site entre nós.
Uma última observação. Aquilo que procuramos no varejo -nosso ibope- é aquilo que os próprios sites e provedores procuram no atacado; o indivíduo enredado no Orkut imita, sem saber, os seus manipuladores. O jogo não se equilibra com isso, mas tudo, mais uma vez, fica parecendo recíproco.


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