São Paulo, sábado, 30 de junho de 2007

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MANUEL DA COSTA PINTO

Em nome do pai


Walter Veltroni, prefeito de Roma, escreve romance que se transformou num fenômeno literário na Itália

"DESCOBERTA AO Amanhecer" se transformou em fenômeno editorial na Itália por motivos extraliterários: seu autor, Walter Veltroni, é prefeito de Roma, figura de destaque na esquerda e, especula-se, candidato a premiê.
Do argentino Domingo Faustino Sarmiento a José Sarney (sem juízos de valor), políticos que escrevem romances não são novidade na América Latina, mas em geral suas obras traem preocupações com a construção ou investigação de uma identidade nacional. Na Europa, a questão é periférica, mesmo num país como a Itália, cuja unificação só ocorreu no século 19. Por isso, o livro de Veltroni não deve ser lido como romance que cifra ideologia nas entrelinhas -mas como ficção sensível aos traumas públicos que incidem sobre a vida privada e continuam a ecoar em momentos de calmaria.
O protagonista de "Descoberta ao Amanhecer" trabalha no Arquivo do Estado e vive um pacato cotidiano familiar. Nem a frieza pragmática da mulher corretora nem as crises do filho adolescente ou a síndrome de Down da caçula provocam sobressaltos nessa célula acomodada ao bem-estar da União Européia.
Entre pesquisas no Google, vagas preocupações com o efeito estufa e leituras de Leopardi e Calvino, porém, existe algo que insiste em quebrar a harmonia: a lembrança persistente do desaparecimento de seu pai, nos anos 70, no ápice das ações terroristas das Brigadas Vermelhas.
Conforme esse elemento perturbador se insinua, o livro perde o ar de crônica e vai criando reverberações simbólicas. Assim, o protagonista Giovanni Astengo -cujo sobrenome é uma flexão do verbo "astenere" ("abster", "manter à distância")- quer se aproximar de seu passado, da mesma maneira que faz no trabalho de arquivista, no qual é responsável por catalogar diários de pessoas comuns. E, enquanto busca a memória do pai que o abandonou, ele delega ao filho a função de cuidar da irmã -reencenando a transmissão dos laços familiares.
Todo o enredo gira em torno de um acontecimento de caráter mágico: em visita à abandonada casa de veraneio dos Astengo (a "casa do sertão vai virar mar", em homenagem a Glauber Rocha), o narrador liga de um velho telefone para o antigo número da família. Quem atende é ele mesmo, às vésperas do desaparecimento. A partir daí, Astengo tenta, em sucessivos telefonemas a seu passado, levantar pistas do sumiço paterno. Esse elemento inverossímil cadencia a narrativa, mas não suprime um impacto que vai além da trama detetivesca.
Tudo o que descobre através do "alter-ego" (que é ele mesmo) poderia ser feito sem seu auxílio; compreende-se, ao final, que esse devaneio foi um modo de Astengo suspender o recalque que o impedia de desvelar a dolorosa verdade do pai -que é também o resumo das traições e dos ressentimentos que latejam sob os consensos do presente.


DESCOBERTA AO AMANHECER
Autor:
Walter Veltroni
Tradutor: Maurício Santana Dias
Editora: Escrituras
Quanto: R$ 29,90 (152 págs.)
Avaliação: ótimo


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