|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MANUEL DA COSTA PINTO
Em nome do pai
Walter Veltroni, prefeito
de Roma, escreve romance que se transformou num fenômeno literário na Itália
|
"DESCOBERTA AO Amanhecer" se transformou em
fenômeno editorial na
Itália por motivos extraliterários:
seu autor, Walter Veltroni, é prefeito de Roma, figura de destaque na
esquerda e, especula-se, candidato a
premiê.
Do argentino Domingo Faustino
Sarmiento a José Sarney (sem juízos
de valor), políticos que escrevem romances não são novidade na América Latina, mas em geral suas obras
traem preocupações com a construção ou investigação de uma identidade nacional. Na Europa, a questão
é periférica, mesmo num país como
a Itália, cuja unificação só ocorreu
no século 19. Por isso, o livro de Veltroni não deve ser lido como romance que cifra ideologia nas entrelinhas -mas como ficção sensível aos
traumas públicos que incidem sobre
a vida privada e continuam a ecoar
em momentos de calmaria.
O protagonista de "Descoberta ao
Amanhecer" trabalha no Arquivo do
Estado e vive um pacato cotidiano
familiar. Nem a frieza pragmática da
mulher corretora nem as crises do
filho adolescente ou a síndrome de
Down da caçula provocam sobressaltos nessa célula acomodada ao
bem-estar da União Européia.
Entre pesquisas no Google, vagas
preocupações com o efeito estufa e
leituras de Leopardi e Calvino, porém, existe algo que insiste em quebrar a harmonia: a lembrança persistente do desaparecimento de seu
pai, nos anos 70, no ápice das ações
terroristas das Brigadas Vermelhas.
Conforme esse elemento perturbador se insinua, o livro perde o ar
de crônica e vai criando reverberações simbólicas. Assim, o protagonista Giovanni Astengo -cujo sobrenome é uma flexão do verbo "astenere" ("abster", "manter à distância")- quer se aproximar de seu
passado, da mesma maneira que faz
no trabalho de arquivista, no qual é
responsável por catalogar diários de
pessoas comuns. E, enquanto busca
a memória do pai que o abandonou,
ele delega ao filho a função de cuidar
da irmã -reencenando a transmissão dos laços familiares.
Todo o enredo gira em torno de
um acontecimento de caráter mágico: em visita à abandonada casa de
veraneio dos Astengo (a "casa do
sertão vai virar mar", em homenagem a Glauber Rocha), o narrador liga de um velho telefone para o antigo número da família. Quem atende
é ele mesmo, às vésperas do desaparecimento. A partir daí, Astengo tenta, em sucessivos telefonemas a seu passado, levantar pistas do sumiço
paterno. Esse elemento inverossímil cadencia a narrativa, mas não
suprime um impacto que vai além
da trama detetivesca.
Tudo o que descobre através do
"alter-ego" (que é ele mesmo) poderia ser feito sem seu auxílio; compreende-se, ao final, que esse devaneio foi um modo de Astengo suspender o recalque que o impedia de
desvelar a dolorosa verdade do pai
-que é também o resumo das traições e dos ressentimentos que latejam sob os consensos do presente.
DESCOBERTA AO AMANHECER
Autor: Walter Veltroni
Tradutor: Maurício Santana Dias
Editora: Escrituras
Quanto: R$ 29,90 (152 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Mostra reúne a arte de espírito punk Próximo Texto: Livros - Crítica/coletânea: Ruy Castro traça panorama musical com marca própria Índice
|