São Paulo, terça, 30 de junho de 1998

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ARTES PLÁSTICAS
MoMA exibe o paradoxo Bonnard

Reprodução
Auto-retrato do artista francês Pierre Bonnard (1867-1947), que tem mostra em cartaz no Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York (EUA)


AMIR LABAKI
de Nova York

Com a exposição aberta há uma semana no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, Pierre Bonnard (1867-1947) parece finalmente superar o status de pintor para iniciados e se converter num artista de popularidade proporcional a seu complexo talento. Já não era sem tempo.
Bonnard sempre desafiou classificações. Muitos insistiram em simplificar tudo, definindo-o como um impressionista tardio ou um renitente figurativista. Foi ambos, mas num grau de sofisticação inalcançado por essas etiquetas.
O início de seus estudos de arte na Paris de 1897 coincidiu com a decadência do impressionismo, com suas pinceladas aparentes, cores inusuais e ampla luminosidade. Mesmo assim, Bonnard não hesitou em abraçar técnicas do movimento, depois de um começo fortemente inspirado por Gauguin (1848-1903) e pela arte japonesa.
Foi sobretudo o agressivo e original uso das cores, libertadas das convenções do "chiaroescuro", que atraiu Bonnard. "Queríamos ir além das impressões naturalísticas das cores", explicaria.
Na virada do século, Bonnard abraçava o impressionismo visando transcendê-lo sem renegá-lo. Enquanto amadurecia seu projeto, explode a revolução da arte moderna, capitaneada pelo cubismo de Georges Braque (1882-1963) e Pablo Picasso (1881-1973).
E a arte moderna, como frisa o crítico britânico Nicholas Watkins, "constitui uma reação contra o impressionismo, especialmente seus seguidores".
A opção estética de Bonnard é sólida e pessoal demais para ser sacudida pelo turbilhão modernista. Sua pintura intimista recorre a métodos próprios para ampliar o olhar. Suas cenas domésticas são crescentemente misteriosas, elusivas, apostando em composições oblíquas, que valorizam como poucos as margens da tela.
Em sua recusa da vanguarda pela vanguarda, Bonnard lembra Proust. Bonnard está para Proust assim como Picasso para Joyce. Na música, Bonnard seria Satie -jamais Schoenberg.
A esquadra moderna jamais perdoaria essa recusa. Ninguém menos que Picasso elegeu-o como grande inimigo. "Não me fale de Bonnard", esbravejaria. "Pincelada por pincelada, centímetro por centímetro, é um "pot-pourri' de indecisão."
O ataque de Picasso, somado à recusa do reservado Bonnard em se sociabilizar com críticos que poderiam justificar teoricamente sua solitária opção, atrasou por décadas o devido reconhecimento da sua obra. Muito lentamente vem se rompendo esse estigma de conservadorismo. Nada mais árduo do que derrubar o preconceito que se concentra sobre um caso verdadeiramente complicado.
Aos poucos, porém, esclarece-se o paradoxo central do caso Bonnard: "Um dos grandes artistas do século 20 alcançou seus objetivos por meios aparentemente regressivos", mais uma vez nas palavras de Watkins.
"A questão da "modernidade' de Bonnard", completa Robert Hughes, "não tem maior importância quando contraposta à visão de sua obra profunda e reflexiva".
O fato de ser a terceira retrospectiva Bonnard organizada pelo museu parece explicar a estrutura não-cronológica escolhida.
As duas primeiras salas abrigam uma espécie de supletivo do do jovem Bonnard. Em "A Partida de Croquet", de 1892, a densa composição dos personagens num jardim, sem resquício de céu ou chão, resulta textura de "tweed".
O primeiro momento de grandeza surge com os nus de "Homem e Mulher" (1900), em que o artista se retrata de pé, ao lado do leito, com a amada Marthe (Marie Boursin, 1869-1942). Nascia um dos mais sutis olhares sobre as delícias e infernos da vida privada.
As duas primeiras salas temáticas, reservadas às naturezas mortas e às paisagens, reúnem o Bonnard menos original e convincente. Na terceira, seus retratos de banhos evoluem num crescendo de sensualismo e espontaneidade, que acabam por flertar com a abstração.
Ao prosaico das situações domésticas da galeria reservada aos interiores contrapõe-se um jogo de camuflagens por meio da manipulação de ângulos e cores. Bonnard só é maior na sala final, que reúne seus auto-retratos.
São nove telas, comentando desde as esperanças de um jovem pintor (1889) à decadência solitária de um espectro que já foi Bonnard (1946). É um conjunto que, sem exagero, eclipsa as séries similares de Vincent van Gogh (1853-90) e Max Beckmann (1884-1950).
Prova maior não há de que, passado o fanatismo vanguardista deste agônico século 20, é mais que hora de deixarmo-nos enternecer pela delicadeza de Bonnard.



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