São Paulo, sábado, 30 de julho de 2011

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CRÍTICA ROMANCE

Naturalismo limita prosa de Carrero

Embora o estilo do autor seja moderno, o enredo do livro está restrito a um mundo arcaico

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Escritor e jornalista pernambucano, Raimundo Carrero tem uma obra literária consistente.
O início da carreira dele remonta aos meados dos anos 1970, com sua filiação ao projeto Armorial, liderado por Ariano Suassuna, destinado a estimular formas de recriação da cultura oral e popular do Nordeste.
"Seria uma Sombria Noite Secreta", seu novo romance, trata do amor incondicional de um vendedor ambulante de sorvetes, com traços de retardamento mental e esquizofrenia, por uma moça da elite do Recife que voluntariamente se prostituíra.
Talvez por ter sido abusada pelo pai, depois assassinado pela mãe, possivelmente cúmplice, mas também por se encantar com as aulas sobre a relevância do "corpo social" na Revolução Francesa.
Tal padrão de excessos, temperado de humor negro, se sustenta bem num andamento narrativo não linear, nem progressivo, mas antes circular e reiterativo.
O procedimento mais eficaz empregado por Carrero para gerar o efeito de circularidade é a fixação e retomada sucessiva de cenas chocantes ou bizarras.
É o caso da cena de abertura, na qual o idiota toca a corneta de sorveteiro para chamar o próximo freguês da prostituta, enquanto espera, de boca aberta, que ela o presenteie com um chocolate em forma de peixinho dourado.
Intensificada por novas situações e pontos de vista, ela reaparece várias vezes ao longo do relato, com efeitos análogos aos da disseminação e recolha em poesia.

EXPRESSIONISTA
Outros recursos afastam a narrativa da representação direta banal: sequências de perguntas que simultaneamente conduzem e suspendem a ação, repetições sempre ternárias de termos, imagens amplificadas e embaçadas, redundâncias etc.
Mesmo as descrições de bairros e lugares do Recife antigo são distorcidas de modo a dar à paisagem conhecida um viés mais expressionista, emocional, no limiar do estilo fantástico.
Por outro lado, é evidente a dificuldade técnica de Carrero para tornar verossímil o discurso indireto livre do narrador que busca incorporar observações poéticas, léxico difícil e ainda pensamentos abstratos em formas lapidares, como se fossem lavra do parvo semialfabetizado.
Os expedientes que procuram justificar o gosto dele por palavras raras, ou o seu uso improvável como simples repetição de termos ouvidos ao acaso, ou ainda como leitura de frases cujo sentido não entende, mas cujo som lhe dá gosto pronunciar, parecem mesmo expedientes e não razões sustentadas pela narração da trama.

SENSUALIDADE
Esse desajuste evidencia outro, mais nuclear: embora o corte narrativo de Carrero seja moderno e de cunho experimental, o seu enredo está restrito a um mundo arcaico, brutalista.
Nele nada pode ser mais significativo que a sensualidade urgente, as paixões repentinas e inexplicáveis, os incestos, a patologia mental e física e, enfim, a humanidade transtornada, tão terna como violenta.
Por isso mesmo, quando Raimundo Carrero diz que o romance, para ele, é um modo de privilegiar "o mundo interior e caótico que forma a mente desses dois seres atormentados", ou ainda um jeito de "estruturar um painel sobre a condição humana", pode-se entender também como, a despeito da experimentação, o registro naturalista ainda é a marca cega da sua invenção.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp.

SERIA UMA SOMBRIA NOITE SECRETA
AUTOR Raimundo Carrero
EDITORA Record
QUANTO R$ 32,90 (144 págs.)
AVALIAÇÃO bom




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