São Paulo, quinta-feira, 30 de agosto de 2001

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GASTRONOMIA

Acabou-se o que era doce

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Todo mundo quer reminiscências. Parece até que ninguém está mais interessado em comer, só em lembrar. De jaca, de tamarindo, de mangarito, de empadinha com recheio úmido. De comida de alma, de comida de mãe. Já lembrei de tudo o que havia para lembrar, acabou-se o que era doce.
O resto, se é que existe, está guardado no esquecimento com a menina loura de trança grossa, o menino de topete de gomalina, mortos tantas vezes, a cada dia, a cada hora. É deles que temos saudade, das vítimas do tempo, e não há vantagem em querer ressuscitá-los à força em imagens distorcidas.
A memória só acode subitamente, quase brutal, quando, ao se regar o jardim, por exemplo, pisa-se no tomateiro. O cheiro traz de volta a menina de tranças, frágil, nua, quase uma polpa trêmula. E, na página seca de um jornal, não há possibilidade de representar a força onírica e lírica de um tomateiro machucado.
Temos uma vocação para a saudade da época em que as coisas se manifestavam pela primeira vez, a alcachofra, uma caixa de segredos, quando o hábito ainda não escondera a intrigante caminhada roxa e verde até o centro. Sensações elementares que se repetiam confortantes, simples e caseiras, os barulhos do café da manhã sendo arrumado na cozinha, o pão estalando com manteiga.
As brincadeiras no jardim de buxinho impedindo o caminho das formigas, a chamada para o caracol sair da casa, vem para fora que tem sol, o almoço de mão lavada, cabelos úmidos para trás, a galinha assada luminosa. A tarde demorando a passar em ouro e tanajuras. Mais longe, a terra dura, o aboio, uma pequena boiada passando eternizada pelo cheiro delicado do estrume. O tempo parado.
Tudo era vago, gelatinoso, incerto, deslumbrante. O interesse se comprometia todo com um pé de galinha, a sensação primitiva daquela pele, a curva feroz daquela unha.
Só nos lembramos de verdade daquilo que miramos com atenção desatenta, que fica preso naquele fundo de alma, na borra que o hábito não cobriu, lugar sem chave. É lá que se grudam as memórias, a essência, o perfume, todos os vidrilhos de cada eu, coisas das mais simples, nosso mundo vivido, embrulhado, escondido de nós mesmos.
Queremos memória, as horas infinitas, o bem-estar, o pequi, a goiaba verde, o melão de são Caetano gosmento, a haste ensolarada de capim, os biscoitos amarelos muchibentos com gosto de armário. Os porcos debaixo da casa, espanto e medo, os fantasmas solenes das varandas mineiras de poucas palavras e muita tosse.
E as memórias só surtam na hora do desastre, do choque, quando se pisa no tomateiro e a lembrança vem inteira, o tempo, a hora, o cigarro; a barba áspera, a promessa segura do abraço.
Queremos ir longe, ao dia em que deixamos de ser peito, praia, as nuvens, o bicho de goiaba. Queremos a hora da borboleta, do desatar, em que viramos "eu", a manga é a manga, eu sou eu. Saudades de nós mesmos, naquele lugar, com aquela gente.
As madeleines de hoje decepcionam, viajam, são ubíquas, transitórias, de nenhum lugar e de todos os lugares ao mesmo tempo. Tomamos o café italiano com o biscoito dinamarquês na pracinha de Louveira. A geografia da fome e do desejo tem atalhos pelo mundo todo, os nuggets de galinha voam nas asas da Panair, a jaca viaja mal, mas viaja, pode ser vista na França assombrando com seu cheiro ou à beira-mar, com gosto de flor.
Madeleine moderna tem "griffe", logotipo, precisa de ambientação, clima, pode ser um Big Mac, pode ter o F da Fauchon, Häagen-Dazs, Nestlé, Garoto. Padronizou-se, globalizou-se. E são feitas especificamente para serem esquecidas e substituídas rapidamente. Temos que trocar de madeleine a cada mudança marqueteira.
Os japoneses resolveram seus problemas com o omiyage. O que é, o que é? É um presente de comida típica de um determinado lugar que os turistas japoneses trazem para os que ficaram em casa. Uma comida típica tradicional de algum lugar do Japão. E desenvolveu-se uma indústria milionária dessas "tradições" inventadas, feitas às toneladas, industrializadas, mas maquiadas de artesanais.
As comunidades locais se fortalecem, individualizam-se frente à metrópole, levantam-se a economia e o orgulho regional. São madeleines forjadas, mas quem se importa? Dá para imaginar um tempo idílico de comida boa, feita em casa, evoca simples prazeres. A indústria do omiyage, moderna madalena, faz lembrar os cheiros da infância. E ninguém precisa se dar ao trabalho de pisar no tomateiro.

E-mail: ninahort@uol.com.br


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