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GASTRONOMIA
Acabou-se o que era doce
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Todo mundo quer reminiscências. Parece até que ninguém está mais interessado em
comer, só em lembrar. De jaca, de
tamarindo, de mangarito, de empadinha com recheio úmido. De
comida de alma, de comida de
mãe. Já lembrei de tudo o que havia para lembrar, acabou-se o que
era doce.
O resto, se é que existe, está
guardado no esquecimento com a
menina loura de trança grossa, o
menino de topete de gomalina,
mortos tantas vezes, a cada dia, a
cada hora. É deles que temos saudade, das vítimas do tempo, e não
há vantagem em querer ressuscitá-los à força em imagens distorcidas.
A memória só acode subitamente, quase brutal, quando, ao
se regar o jardim, por exemplo,
pisa-se no tomateiro. O cheiro
traz de volta a menina de tranças,
frágil, nua, quase uma polpa trêmula. E, na página seca de um jornal, não há possibilidade de representar a força onírica e lírica de
um tomateiro machucado.
Temos uma vocação para a saudade da época em que as coisas se
manifestavam pela primeira vez,
a alcachofra, uma caixa de segredos, quando o hábito ainda não
escondera a intrigante caminhada
roxa e verde até o centro. Sensações elementares que se repetiam
confortantes, simples e caseiras,
os barulhos do café da manhã
sendo arrumado na cozinha, o
pão estalando com manteiga.
As brincadeiras no jardim de
buxinho impedindo o caminho
das formigas, a chamada para o
caracol sair da casa, vem para fora
que tem sol, o almoço de mão lavada, cabelos úmidos para trás, a
galinha assada luminosa. A tarde
demorando a passar em ouro e tanajuras. Mais longe, a terra dura,
o aboio, uma pequena boiada
passando eternizada pelo cheiro
delicado do estrume. O tempo parado.
Tudo era vago, gelatinoso, incerto, deslumbrante. O interesse
se comprometia todo com um pé
de galinha, a sensação primitiva
daquela pele, a curva feroz daquela unha.
Só nos lembramos de verdade
daquilo que miramos com atenção desatenta, que fica preso naquele fundo de alma, na borra que
o hábito não cobriu, lugar sem
chave. É lá que se grudam as memórias, a essência, o perfume, todos os vidrilhos de cada eu, coisas
das mais simples, nosso mundo
vivido, embrulhado, escondido
de nós mesmos.
Queremos memória, as horas
infinitas, o bem-estar, o pequi, a
goiaba verde, o melão de são Caetano gosmento, a haste ensolarada de capim, os biscoitos amarelos muchibentos com gosto de armário. Os porcos debaixo da casa,
espanto e medo, os fantasmas solenes das varandas mineiras de
poucas palavras e muita tosse.
E as memórias só surtam na hora do desastre, do choque, quando se pisa no tomateiro e a lembrança vem inteira, o tempo, a hora, o cigarro; a barba áspera, a
promessa segura do abraço.
Queremos ir longe, ao dia em
que deixamos de ser peito, praia,
as nuvens, o bicho de goiaba.
Queremos a hora da borboleta, do
desatar, em que viramos "eu", a
manga é a manga, eu sou eu. Saudades de nós mesmos, naquele lugar, com aquela gente.
As madeleines de hoje decepcionam, viajam, são ubíquas,
transitórias, de nenhum lugar e de
todos os lugares ao mesmo tempo. Tomamos o café italiano com
o biscoito dinamarquês na pracinha de Louveira. A geografia da
fome e do desejo tem atalhos pelo
mundo todo, os nuggets de galinha voam nas asas da Panair, a jaca viaja mal, mas viaja, pode ser
vista na França assombrando
com seu cheiro ou à beira-mar,
com gosto de flor.
Madeleine moderna tem "griffe", logotipo, precisa de ambientação, clima, pode ser um Big
Mac, pode ter o F da Fauchon,
Häagen-Dazs, Nestlé, Garoto. Padronizou-se, globalizou-se. E são
feitas especificamente para serem
esquecidas e substituídas rapidamente. Temos que trocar de madeleine a cada mudança marqueteira.
Os japoneses resolveram seus
problemas com o omiyage. O que
é, o que é? É um presente de comida típica de um determinado lugar que os turistas japoneses trazem para os que ficaram em casa.
Uma comida típica tradicional de
algum lugar do Japão. E desenvolveu-se uma indústria milionária
dessas "tradições" inventadas, feitas às toneladas, industrializadas,
mas maquiadas de artesanais.
As comunidades locais se fortalecem, individualizam-se frente à
metrópole, levantam-se a economia e o orgulho regional. São madeleines forjadas, mas quem se
importa? Dá para imaginar um
tempo idílico de comida boa, feita
em casa, evoca simples prazeres.
A indústria do omiyage, moderna
madalena, faz lembrar os cheiros
da infância. E ninguém precisa se
dar ao trabalho de pisar no tomateiro.
E-mail: ninahort@uol.com.br
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