|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Liberdade moral
Alan Wolfe , eminente sociólogo do Boston College,
acaba de publicar "Moral Freedom" (Liberdade Moral, Norton
& Co.), indagação sobre os sentimentos morais dos americanos.
No ano passado, Wolfe já tinha
produzido uma ampla sondagem
de opinião sobre esse tema, que
foi apresentada no "The New
York Times". O novo livro traz
uma série de entrevistas efetuadas para aprimorar os resultados
da pesquisa inicial. Trata-se de
encontros com sujeitos que representam setores extremos e opostos
da sociedade americana: Castro
(bairro de San Francisco preferido pela comunidade gay), uma
base da Força Aérea, a riquíssima
Silicon Valley, uma cidade decaída do Estado de Massachusetts e
por aí vai.
Entrevistando esses sujeitos
anômalos, Wolfe confirma o resultado encontrado originalmente e afirma que, apesar de diferenças radicais de condição social e
de idéias, quase todos os americanos praticam a "liberdade moral"
moderna. Mas o que é isso?
É claro que as idéias morais de
Sue Simpson, mulher homossexual de San Francisco, são diferentes das convicções de Mary
Masters, uma cristã renascida do
Connecticut. Se elas se encontrassem, detestar-se-iam. Masters
condenaria Simpson ao inferno e
Simpson acharia a existência de
Masters um atraso da civilização.
Mas Wolfe mostra que ambas,
embora defendendo princípios
opostos, praticam a liberdade
moral, pois adotam suas posições
respectivas por uma escolha consciente e livre, e não pela simples
força de regras preestabelecidas e
inquestionáveis. As entrevistas
revelam que, hoje, mesmo quem
defende uma moral normativa
valoriza a livre escolha em nome
da qual decidiu submeter-se ao
rigor da norma.
Em suma, a liberdade moral
que, segundo Wolfe, seria dominante nos EUA (se não no mundo
ocidental) não tem nada a ver
com permissividade. Pratica a liberdade moral quem toma (e
quer tomar) suas decisões morais
por conta própria. Esse é o caso
tanto dos conservadores mais repressivos quanto dos libertinos.
Imaginemos que eu resolva minhas questões morais pela estrita
obediência à Bíblia. E que você,
ao contrário, em situações análogas, invente livremente critérios
para julgar e decidir. Mesmo assim, seremos menos diferentes do
que parece: acontece que eu sei e
reconheço que a decisão de me
submeter à Bíblia foi minha.
Portanto, atrás do livro ao qual
me refiro sem parar, o fundamento último de minhas decisões morais sou eu mesmo. Nisso não difiro de você, que inventa seus próprios critérios. Ambos somos praticantes da liberdade moral moderna, pois nossas escolhas éticas
são, direta ou indiretamente, o
efeito de uma decisão autônoma
que ambos prezamos.
Wolfe resume: "Há mesmo uma
maioria moral nos EUA. São os
sujeitos que querem decidir com
sua própria cabeça".
Difícil não concordar com as
conclusões de Wolfe. É claro que
os sistemas morais tradicionais
não conseguem mais se impor
sem passar pelo crivo do consentimento dos adeptos. Por exemplo,
contra a vontade da Igreja, muitos católicos são favoráveis ao
aborto, discutem o fundamento
do celibato do clero, acham certo
usar camisinha e consideram ridículo o dogma da infalibilidade
do pontífice. Para os fiéis modernos, valem os preceitos que eles
mesmos aprovam livremente.
Wolfe acredita que a liberdade
moral quase não tenha mais adversários hoje. Certo, há fundamentalistas para os quais qualquer livre escolha é uma manifestação satânica. Mas talvez eles sejam apenas restos arcaicos de culturas vencidas.
A verdadeira dificuldade está
em nós. Pois a prática da liberdade moral acarreta vários inconvenientes quando comparada com
o reinado de uma moral autoritária. Na liberdade moral, por
exemplo, é difícil chegar a um
consenso e falta uma garantia absoluta de que as decisões sejam
corretas. É frequente que cada decisão deixe dúvidas intoleráveis
pairando na consciência -quem
foi ou conheceu alguém que foi
jurado num processo penal conhece esse tormento.
Enfim, a liberdade moral é cansativa, pois requer a cada instante o esforço de inventar critérios
para julgar.
Reagimos a essas complicações
de duas maneiras. Por um lado,
nostalgicamente, interpretamos a
liberdade moral, que é nossa originalidade cultural, como uma
inconsistência, como uma falha
ou mesmo como um sinal de decadência. Lamentamos, em suma, um passado (mítico) regido
por códigos de ferro.
Por outro lado, tentamos freneticamente descobrir dentro de nós
algo que possa servir de fundamento para as decisões morais.
Desde que fomos convidados a
decidir autonomamente o que é
bom e o que é mau, ou seja, a sermos a origem da moral, exploramos nosso cérebro e nossas tripas
buscando um sentimento, um impulso, qualquer coisa que dê legitimidade a nossas decisões.
Procuramos (ou elegemos) uma
parte de nós -mais verdadeira- na qual confiar para nossas
escolhas morais. A razão? A sociabilidade, que nos faz desejar o
bem comum? O instinto de sobrevivência? A vontade de ser feliz?
Qual é, a seu ver, a resposta do
dia?
E-mail: ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Doces: DeliParis lança as tradicionais madeleines Próximo Texto: Dança-teatro: Luzes ainda piscam no Brasil de Bausch Índice
|