UOL


São Paulo, sábado, 30 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Poesia e pensamento abstrato em Júlio Castanõn Guimarães

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Todos os poetas verdadeiros são necessariamente críticos de primeira ordem", escreveu Valéry no ensaio "Poesia e Pensamento Abstrato".
Os críticos aos quais o autor francês se refere, porém, não são aqueles poetas que escrevem textos teóricos, resenhas publicadas em jornal, reflexões de circunstância; eles são uma espécie de consciência poética interiorizada na escrita, que preside essa arte combinatória produzindo no leitor a ilusão de sua gratuidade (a "inspiração" como uma espécie de graça divina).
Para Valéry, a poesia pode provocar no leitor um efeito de "transcendência", mas esse efeito não se confunde com o caráter material do trabalho do poeta, que manobra as palavras para fazer com que som e sentido adquiram uma relação necessária (diferentemente do que acontece na linguagem comum, em que essa relação é arbitrária).
Essa manobra, por sua vez, exige o exame crítico, distanciado do próprio processo criativo -e por isso Valéry completa o raciocínio inicial com a afirmação de que "todo poeta verdadeiro é muito mais capaz do que se pensa geralmente de raciocínio exato e de pensamento abstrato".
Essa breve reflexão tem um motivo: eu não saberia identificar hoje na poesia brasileira um autor que encarnasse melhor esse "pensamento abstrato" do que Júlio Castañon Guimarães, que acaba de lançar "Práticas de Extravio" (7 Letras).
Castañon Guimarães pode ser inserido, ao lado de Duda Machado, Régis Bonvicino e Nelson Ascher, no contexto do pós-concretismo. Seu título anterior ("Matéria e Paisagem", de 1998) reunia tanto a produção mais recente, de feição lírica, quanto os poemas de seus dois primeiros livros ("17 Peças" e "Vertentes"), em que a exploração da visualidade e as referências a Pound e a Augusto de Campos denotavam sua dívida em relação aos concretistas.
"Práticas de Extravio", contudo, assinala um desvio. Como se sabe, uma das características centrais da poesia concreta é a metalinguagem, em que a palavra é o objeto do poema, em que a construção verbal aparece como fim último da própria literatura.
No caso de Castañon Guimarães, os poemas também tratam da linguagem, mas numa outra ordem, que poderíamos chamar de "moral". O termo pode parecer descabido para um poeta tão preciso, quase descarnado. O fato, todavia, é que existe aqui uma espécie de pudor da escrita.
Os "temas" de "Práticas de Extravio" são a memória, a contemplação de paisagens, o registro do cotidiano, enfim, todo um repertório da lírica brasileira que, não por acaso, se encontra na vertente oposta à do concretismo.
Mas a singularidade de Castañon Guimarães está justamente na forma como, ao colocar essa experiência no horizonte de sua poética, ele a controla de tal modo que é o próprio controle da expressão que se explicita: "a matéria como projeto/ de dimensão do olhar/ quando no espaço/ não só uma ordenação/ nem frágil descompasso/ mas todo um percurso/ linhas volumes cálculo/ talvez resumo de paisagem".
Muitos dos poemas de Castañon Guimarães são compostos por uma única oração que descreve longa perífrase ao redor de seu objeto. Há conteúdos latentes que pulsam entre os versos, mas o poeta se aproxima deles com cuidado, se atém à linha que os descreve, evita com "claro engenho" sucumbir à disformidade da sensação.
A poesia é "a ponte/ que como sumário de cálculos/ se estira em meio a uma natureza/ sem medidas mas em rigor contida/ no que a lente organiza".
Retomando a comparação com os concretistas, havia nestes uma confiança na palavra que reivindicava a autonomia radical da literatura, sua libertação de determinações externas (psicológicas, sociais, políticas).
A poesia de Castañon Guimarães corresponde a um outro momento, pós-utópico, em que o poeta também se extravia do mundo, mas ao mesmo tempo desconfia das palavras, compondo um "mapa de suspeitas", olhando as coisas pela lente de um pensamento abstrato em que experiência e poesia são organizadas segundo as leis de uma "fábrica de memórias e hipóteses".


Práticas de Extravio
    
Autor: Júlio Castañon Guimarães
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 15 (64 págs.)


Texto Anterior: Nova obra corrige erros de tradução
Próximo Texto: Trecho
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.