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RODAPÉ
Poesia e pensamento abstrato em Júlio Castanõn Guimarães
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Todos os poetas verdadeiros são necessariamente
críticos de primeira ordem", escreveu Valéry no ensaio "Poesia e
Pensamento Abstrato".
Os críticos aos quais o autor
francês se refere, porém, não são
aqueles poetas que escrevem textos teóricos, resenhas publicadas
em jornal, reflexões de circunstância; eles são uma espécie de
consciência poética interiorizada
na escrita, que preside essa arte
combinatória produzindo no leitor a ilusão de sua gratuidade (a
"inspiração" como uma espécie
de graça divina).
Para Valéry, a poesia pode provocar no leitor um efeito de
"transcendência", mas esse efeito
não se confunde com o caráter
material do trabalho do poeta,
que manobra as palavras para fazer com que som e sentido adquiram uma relação necessária (diferentemente do que acontece na
linguagem comum, em que essa
relação é arbitrária).
Essa manobra, por sua vez, exige o exame crítico, distanciado do
próprio processo criativo -e por
isso Valéry completa o raciocínio
inicial com a afirmação de que
"todo poeta verdadeiro é muito
mais capaz do que se pensa geralmente de raciocínio exato e de
pensamento abstrato".
Essa breve reflexão tem um motivo: eu não saberia identificar hoje na poesia brasileira um autor
que encarnasse melhor esse "pensamento abstrato" do que Júlio
Castañon Guimarães, que acaba
de lançar "Práticas de Extravio" (7
Letras).
Castañon Guimarães pode ser
inserido, ao lado de Duda Machado, Régis Bonvicino e Nelson Ascher, no contexto do pós-concretismo. Seu título anterior ("Matéria e Paisagem", de 1998) reunia
tanto a produção mais recente, de
feição lírica, quanto os poemas de
seus dois primeiros livros ("17 Peças" e "Vertentes"), em que a exploração da visualidade e as referências a Pound e a Augusto de
Campos denotavam sua dívida
em relação aos concretistas.
"Práticas de Extravio", contudo,
assinala um desvio. Como se sabe,
uma das características centrais
da poesia concreta é a metalinguagem, em que a palavra é o objeto do poema, em que a construção verbal aparece como fim último da própria literatura.
No caso de Castañon Guimarães, os poemas também tratam
da linguagem, mas numa outra
ordem, que poderíamos chamar
de "moral". O termo pode parecer
descabido para um poeta tão preciso, quase descarnado. O fato, todavia, é que existe aqui uma espécie de pudor da escrita.
Os "temas" de "Práticas de Extravio" são a memória, a contemplação de paisagens, o registro do
cotidiano, enfim, todo um repertório da lírica brasileira que, não
por acaso, se encontra na vertente
oposta à do concretismo.
Mas a singularidade de Castañon Guimarães está justamente
na forma como, ao colocar essa
experiência no horizonte de sua
poética, ele a controla de tal modo
que é o próprio controle da expressão que se explicita: "a matéria como projeto/ de dimensão do
olhar/ quando no espaço/ não só
uma ordenação/ nem frágil descompasso/ mas todo um percurso/ linhas volumes cálculo/ talvez
resumo de paisagem".
Muitos dos poemas de Castañon Guimarães são compostos
por uma única oração que descreve longa perífrase ao redor de seu
objeto. Há conteúdos latentes que
pulsam entre os versos, mas o
poeta se aproxima deles com cuidado, se atém à linha que os descreve, evita com "claro engenho"
sucumbir à disformidade da sensação.
A poesia é "a ponte/ que como
sumário de cálculos/ se estira em
meio a uma natureza/ sem medidas mas em rigor contida/ no que
a lente organiza".
Retomando a comparação com
os concretistas, havia nestes uma
confiança na palavra que reivindicava a autonomia radical da literatura, sua libertação de determinações externas (psicológicas, sociais, políticas).
A poesia de Castañon Guimarães corresponde a um outro momento, pós-utópico, em que o
poeta também se extravia do
mundo, mas ao mesmo tempo
desconfia das palavras, compondo um "mapa de suspeitas",
olhando as coisas pela lente de um
pensamento abstrato em que experiência e poesia são organizadas segundo as leis de uma "fábrica de memórias e hipóteses".
Práticas de Extravio
Autor: Júlio Castañon Guimarães
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 15 (64 págs.)
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