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São Paulo, sábado, 30 de agosto de 2003

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MEMÓRIA

O mais faminto dos antropofágicos

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nesses 49 anos em que estou no planeta, já sentei na frente de um bando de gente impressionante. Desde um mendigo em Union Square, que dizia as verdades mais insuperáveis da física e da astrofísica, até Samuel Beckett, com quem tive um convívio modesto, pequeno, mas cuja obra acabei representando pelos palcos do mundo afora. Desde a minha adolescência, convivendo com Helio Oiticica, pairava no ar (e nas redondezas) um mito chamado Haroldo de Campos.
Certo dia em Nova York (eu devia ter uns 14 ou 15 anos), ele apareceu por lá. Helio não me deixou chegar perto. Dizia que eu não entenderia nada. Era um suposto encontro entre o Haroldo e Umberto Eco. O Helio (que não havia sido convidado) acabou indo para o hotel onde o Haroldo estava hospedado, e eu (gamado na poesia concreta e naquela coisa toda de metaesquema e metalinguagem; um gurizinho que andava com um livro de Joyce debaixo do braço) fiquei emburrado e enciumado por não ter ido àquele encontro. Ficava num canto do quarto xingando aquele trio de HHH, como se estivesse os chamando de KKK (Ku Klux Klan).
Começo esse texto de uma maneira light só como um disfarce, pois a perda de Haroldo de Campos, para mim, foi uma coisa de uma proporção inexplicável. A notícia me veio no dia da estréia de "Tristão e Isolda" no Teatro Municipal do Rio e, já na hora, me tirou completamente o tesão de estrear o espetáculo. Haroldo e eu éramos muito próximos. Muito mesmo. Para quem quer conferir, basta checar a TV UOL, na última entrevista que fiz com ele (há uns oito meses), e os livros a respeito da minha obra que ele organizou para a editora Perspectiva.
Escrevi "Eletra com Creta" em 1986, especificamente para os irmãos Campos e para Décio Pignatari. Dois anos depois, durante a Trilogia Kafka, Haroldo e eu nos víamos pelo menos de três em três dias. Falávamos pelos cotovelos. Às vezes nos atropelávamos. Era o nosso entusiasmo comum por James Joyce e por Goethe.
Se este país fosse um pouco mais justo com seus intelectuais, Haroldo de Campos teria sido tratado como o foi Jorge Luis Borges na Argentina. Em vez disso, recebia mais homenagens lá fora (a última foi no Guggenheim em Nova York) do que em sua cidade natal. Quer se reescrever o rumo do modernismo desse país. Mas a verdade é que não existiria o tropicalismo, Caetano, Gil, Oiticica e até Glauber se Haroldo não tivesse pavimentado essa estrada.
Claro, Haroldo é descendente de Oswald, assim como Beckett é descendente de Joyce. Ninguém surge do nada. Mas ainda não consigo entender direito que, naquela casinha ali em Perdizes, eu não vou poder mais visitar o Haroldo, bisbilhotar seus livros, ouvi-lo falar iluminadamente sobre o Iluminismo, sempre descobrindo mais uma faceta sobre Goethe que nem os alemães (nem o próprio Max Benze) sabiam.
Quando encenei, no Rio, em 1997, seu ""Graal: O Retrato de Fausto Quando Jovem", peça que ele havia esboçado/escrito em 1952, notei que ele não dava os pulos de satisfação que eu esperava dele. ""Que foi, Haroldo? Algo de errado com a minha encenação?" ""Não, muito pelo contrário, Gerald, só que agora me dou conta de que os anjinhos carnavalescos de Fausto eram todos gays", e... caímos na gargalhada.
Ou seja, Haroldo era o meu grande mentor. E isso é dizer pouco. Sem ele e os modernistas de São Paulo (semana de 22, claro), o Brasil estaria fadado a ser uma republiqueta de banana ou a chatíssimos bumbas-meus-bois que Deus me livre. O Brasil teve a sua Weimar, a sua Bauhaus. E ela se deu através da poesia concreta.
Quero saber como vão preservar o nome dele. Eu continuarei a mencioná-lo e homenageá-lo, como sempre fiz, pois o número de detratores que Haroldo tem, como todo revolucionário, é impressionante.
Mas, além de revolucionário, ele era também um educador fazendo conexões entre culturas, construindo pontes incríveis entre culturas anciãs, orientais, ocidentais, medievais e modernas etc.
Eu tive o enorme privilégio de poder ter convivido com ele nessas últimas duas décadas e de ter aprendido com ele uma enormidade. É impensável imaginar que, enquanto escrevo, aquele ser se foi, e Carmen, sua mulher, e Ivan, seu filho, se vêem diante de uma urna de cinzas, como se fosse aquela peça perplexa de Beckett, "Play", onde em três urnas as personagens se perguntam o que fazem sobre a Terra.
Mas como suas duas grandes obsessões em vida foram "Finnegans Wake" (um trocadilho que pode significar funeral de Finnegan e o despertar de Finnegan) e "Fausto", aquele que vende a alma ao diabo para manter sua eternidade, Haroldo agora vai poder conferir ao "vivo" do que se trata essa brincadeira toda, esse paradoxo circense todo aqui na Terra, que chamamos de existência.
Adeus, queridíssimo amigo.


Gerald Thomas é dramaturgo


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