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MEMÓRIA
O mais faminto dos antropofágicos
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nesses 49 anos em que estou
no planeta, já sentei na frente de um bando de gente impressionante. Desde um mendigo em
Union Square, que dizia as verdades mais insuperáveis da física e
da astrofísica, até Samuel Beckett,
com quem tive um convívio modesto, pequeno, mas cuja obra
acabei representando pelos palcos do mundo afora. Desde a minha adolescência, convivendo
com Helio Oiticica, pairava no ar
(e nas redondezas) um mito chamado Haroldo de Campos.
Certo dia em Nova York (eu devia ter uns 14 ou 15 anos), ele apareceu por lá. Helio não me deixou
chegar perto. Dizia que eu não entenderia nada. Era um suposto
encontro entre o Haroldo e Umberto Eco. O Helio (que não havia
sido convidado) acabou indo para o hotel onde o Haroldo estava
hospedado, e eu (gamado na poesia concreta e naquela coisa toda
de metaesquema e metalinguagem; um gurizinho que andava
com um livro de Joyce debaixo do
braço) fiquei emburrado e enciumado por não ter ido àquele encontro. Ficava num canto do
quarto xingando aquele trio de
HHH, como se estivesse os chamando de KKK (Ku Klux Klan).
Começo esse texto de uma maneira light só como um disfarce,
pois a perda de Haroldo de Campos, para mim, foi uma coisa de
uma proporção inexplicável. A
notícia me veio no dia da estréia
de "Tristão e Isolda" no Teatro
Municipal do Rio e, já na hora, me
tirou completamente o tesão de
estrear o espetáculo. Haroldo e eu
éramos muito próximos. Muito
mesmo. Para quem quer conferir,
basta checar a TV UOL, na última
entrevista que fiz com ele (há uns
oito meses), e os livros a respeito
da minha obra que ele organizou
para a editora Perspectiva.
Escrevi "Eletra com Creta" em
1986, especificamente para os irmãos Campos e para Décio Pignatari. Dois anos depois, durante
a Trilogia Kafka, Haroldo e eu nos
víamos pelo menos de três em três
dias. Falávamos pelos cotovelos.
Às vezes nos atropelávamos. Era o
nosso entusiasmo comum por James Joyce e por Goethe.
Se este país fosse um pouco
mais justo com seus intelectuais,
Haroldo de Campos teria sido tratado como o foi Jorge Luis Borges
na Argentina. Em vez disso, recebia mais homenagens lá fora (a última foi no Guggenheim em Nova
York) do que em sua cidade natal.
Quer se reescrever o rumo do modernismo desse país. Mas a verdade é que não existiria o tropicalismo, Caetano, Gil, Oiticica e até
Glauber se Haroldo não tivesse
pavimentado essa estrada.
Claro, Haroldo é descendente
de Oswald, assim como Beckett é
descendente de Joyce. Ninguém
surge do nada. Mas ainda não
consigo entender direito que, naquela casinha ali em Perdizes, eu
não vou poder mais visitar o Haroldo, bisbilhotar seus livros, ouvi-lo falar iluminadamente sobre
o Iluminismo, sempre descobrindo mais uma faceta sobre Goethe
que nem os alemães (nem o próprio Max Benze) sabiam.
Quando encenei, no Rio, em
1997, seu ""Graal: O Retrato de
Fausto Quando Jovem", peça que
ele havia esboçado/escrito em
1952, notei que ele não dava os
pulos de satisfação que eu esperava dele. ""Que foi, Haroldo? Algo
de errado com a minha encenação?" ""Não, muito pelo contrário,
Gerald, só que agora me dou conta de que os anjinhos carnavalescos de Fausto eram todos gays",
e... caímos na gargalhada.
Ou seja, Haroldo era o meu
grande mentor. E isso é dizer pouco. Sem ele e os modernistas de
São Paulo (semana de 22, claro), o
Brasil estaria fadado a ser uma republiqueta de banana ou a chatíssimos bumbas-meus-bois que
Deus me livre. O Brasil teve a sua
Weimar, a sua Bauhaus. E ela se
deu através da poesia concreta.
Quero saber como vão preservar o nome dele. Eu continuarei a
mencioná-lo e homenageá-lo, como sempre fiz, pois o número de
detratores que Haroldo tem, como todo revolucionário, é impressionante.
Mas, além de revolucionário, ele
era também um educador fazendo conexões entre culturas, construindo pontes incríveis entre culturas anciãs, orientais, ocidentais,
medievais e modernas etc.
Eu tive o enorme privilégio de
poder ter convivido com ele nessas últimas duas décadas e de ter
aprendido com ele uma enormidade. É impensável imaginar que,
enquanto escrevo, aquele ser se
foi, e Carmen, sua mulher, e Ivan,
seu filho, se vêem diante de uma
urna de cinzas, como se fosse
aquela peça perplexa de Beckett,
"Play", onde em três urnas as personagens se perguntam o que fazem sobre a Terra.
Mas como suas duas grandes
obsessões em vida foram "Finnegans Wake" (um trocadilho que
pode significar funeral de Finnegan e o despertar de Finnegan) e
"Fausto", aquele que vende a alma ao diabo para manter sua eternidade, Haroldo agora vai poder
conferir ao "vivo" do que se trata
essa brincadeira toda, esse paradoxo circense todo aqui na Terra,
que chamamos de existência.
Adeus, queridíssimo amigo.
Gerald Thomas é dramaturgo
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