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São Paulo, sábado, 30 de agosto de 2003

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WALTER SALLES

"Memórias do Subdesenvolvimento", mais atual do que nunca

No início, há o som de tambores e corpos que pulsam. Dezenas, centenas de pessoas, mestiços, negros em sua maioria, dançam. Tudo é movimento e êxtase. De repente, ouvem-se dois tiros. Um homem jaz no chão -um corpo sem vida. Em volta dele, a música e o ritmo ensurdecedor não param. A cadência é frenética. A câmera busca rostos na multidão, até se deter na face de uma jovem negra. A imagem se congela no seu rosto em transe.
Assim começa "Memórias do Subdesenvolvimento", dirigido pelo cubano Tomás Gutierrez Alea, que foi exibido nesta semana na mostra Latinidades, organizada pelo Sesc. Há filmes que não sobrevivem ao teste do tempo. Com o filme de Alea, aconteceu exatamente o contrário: não só permanece de uma extraordinária atualidade como também dá um belo puxão de orelha na produção cinematográfica atual. Em "Memórias", Alea prova que um extremo rigor e um experimentalismo radical podem andar de mãos dadas. Nada é aleatório, cada imagem ecoando na imagem seguinte, construindo um todo que se configura maior do que a soma das partes.
O filme, baseado em uma novela de Edmundo Desnoes, narra a história de Sérgio, um jovem intelectual de origem burguesa que vive na Cuba revolucionária de 1961. Sérgio se recusou a partir para Miami com sua família, da qual tem uma visão crítica. Mas, por outro lado, ele também é um estrangeiro em uma sociedade em mutação. É um corpo estranho, entre fronteiras. Um homem que usa sua cultura européia como escudo e refúgio. E que, no mundo pulsante e em transformação que descreve Alea no início de seu filme, virou um anacronismo.
O filme, a exemplo de Sérgio, navega entre estados diferentes -entre a ficção e o documentário, entre o presente e o passado, entre a África e a Europa. A narrativa dialética toma a forma de uma colagem, mas uma colagem elaborada com um rigor conceitual, cinematográfico, incomum. Cenas de cinejornais, fragmentos históricos, manchetes de revistas se mesclam, colidem, organizadas em torno das reflexões de Sérgio.
O homem é um observador. Sérgio acompanha o dia-a-dia em Havana de longe, através de binóculos. À distância, sem sujar as mãos. Mas é ele, na verdade, o animal que está sendo observado pela câmera de Alea. Sérgio revisita amores passados, faz o inventário de suas frustrações presentes. A história pessoal de Sérgio e a história que está sendo reescrita a cada instante se fundem, numa síntese aguda e fascinante. A crise existencial de um só indivíduo se torna subitamente representativa de um todo.
"Memórias" também tem o desejo de mostrar que aquilo que é considerado "subdesenvolvimento" muda de acordo com o ponto de vista. A inteligência de Alea está em não apequenar Sérgio, cuja visão desconstrutiva do passado e do presente é provida de uma lógica cáustica e bem-humorada. Só depois de algum tempo é que percebemos que esse olhar aparentemente agudo não possui perspectiva histórica. Não relaciona causa e consequência. Sérgio é capaz de criticar, mas não de apontar a origem estrutural dos problemas que percebe.
Nesse sentido, "Memórias" não é só um filme sobre a questão do "subdesenvolvimento". É um filme sobre a atitude das pessoas diante desse problema. É isso que o torna, talvez, tão atual. E, por que não, tão próximo daquilo que vivemos hoje no Brasil.
PS: Para quem perdeu "Memórias" no Cinesesc, o filme pode ser alugado em videolocadoras especializadas, como a Polytheama, no Rio de Janeiro. E ser visto, quem sabe, com "São Paulo S.A.", de Luis Sérgio Person, um primo próximo. Ou "A Regra do Jogo", de Jean Renoir, cujo personagem principal, Dalio, tem um distanciamento em relação ao mundo que lembra o de Sérgio. Programão.


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