|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
WALTER SALLES
"Memórias do Subdesenvolvimento", mais atual do que nunca
No início, há o som de tambores e corpos que pulsam.
Dezenas, centenas de pessoas,
mestiços, negros em sua maioria,
dançam. Tudo é movimento e êxtase. De repente, ouvem-se dois tiros. Um homem jaz no chão
-um corpo sem vida. Em volta
dele, a música e o ritmo ensurdecedor não param. A cadência é
frenética. A câmera busca rostos
na multidão, até se deter na face
de uma jovem negra. A imagem
se congela no seu rosto em transe.
Assim começa "Memórias do
Subdesenvolvimento", dirigido
pelo cubano Tomás Gutierrez
Alea, que foi exibido nesta semana na mostra Latinidades, organizada pelo Sesc. Há filmes que
não sobrevivem ao teste do tempo. Com o filme de Alea, aconteceu exatamente o contrário: não
só permanece de uma extraordinária atualidade como também
dá um belo puxão de orelha na
produção cinematográfica atual.
Em "Memórias", Alea prova que
um extremo rigor e um experimentalismo radical podem andar
de mãos dadas. Nada é aleatório,
cada imagem ecoando na imagem seguinte, construindo um todo que se configura maior do que
a soma das partes.
O filme, baseado em uma novela de Edmundo Desnoes, narra a
história de Sérgio, um jovem intelectual de origem burguesa que
vive na Cuba revolucionária de
1961. Sérgio se recusou a partir
para Miami com sua família, da
qual tem uma visão crítica. Mas,
por outro lado, ele também é um
estrangeiro em uma sociedade
em mutação. É um corpo estranho, entre fronteiras. Um homem
que usa sua cultura européia como escudo e refúgio. E que, no
mundo pulsante e em transformação que descreve Alea no início de seu filme, virou um anacronismo.
O filme, a exemplo de Sérgio,
navega entre estados diferentes
-entre a ficção e o documentário, entre o presente e o passado,
entre a África e a Europa. A narrativa dialética toma a forma de
uma colagem, mas uma colagem
elaborada com um rigor conceitual, cinematográfico, incomum.
Cenas de cinejornais, fragmentos
históricos, manchetes de revistas
se mesclam, colidem, organizadas
em torno das reflexões de Sérgio.
O homem é um observador. Sérgio acompanha o dia-a-dia em
Havana de longe, através de binóculos. À distância, sem sujar as
mãos. Mas é ele, na verdade, o
animal que está sendo observado
pela câmera de Alea. Sérgio revisita amores passados, faz o inventário de suas frustrações presentes. A história pessoal de Sérgio e
a história que está sendo reescrita
a cada instante se fundem, numa
síntese aguda e fascinante. A crise
existencial de um só indivíduo se
torna subitamente representativa
de um todo.
"Memórias" também tem o desejo de mostrar que aquilo que é
considerado "subdesenvolvimento" muda de acordo com o ponto
de vista. A inteligência de Alea está em não apequenar Sérgio, cuja
visão desconstrutiva do passado e
do presente é provida de uma lógica cáustica e bem-humorada.
Só depois de algum tempo é que
percebemos que esse olhar aparentemente agudo não possui
perspectiva histórica. Não relaciona causa e consequência. Sérgio é capaz de criticar, mas não de
apontar a origem estrutural dos
problemas que percebe.
Nesse sentido, "Memórias" não
é só um filme sobre a questão do
"subdesenvolvimento". É um filme sobre a atitude das pessoas
diante desse problema. É isso que
o torna, talvez, tão atual. E, por
que não, tão próximo daquilo que
vivemos hoje no Brasil.
PS: Para quem perdeu "Memórias" no Cinesesc, o filme pode ser
alugado em videolocadoras especializadas, como a Polytheama,
no Rio de Janeiro. E ser visto,
quem sabe, com "São Paulo S.A.",
de Luis Sérgio Person, um primo
próximo. Ou "A Regra do Jogo",
de Jean Renoir, cujo personagem
principal, Dalio, tem um distanciamento em relação ao mundo
que lembra o de Sérgio. Programão.
Texto Anterior: Piadas de salão Próximo Texto: Panorâmica - Teatro: Morre aos 75 dramaturgo alemão Peter Hacks Índice
|