São Paulo, quarta-feira, 30 de agosto de 2006

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Comentário

Em cenário de montanhas, Chico é "cada vez mais músico"

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Como é possível cantar as montanhas? "É assim como se o ritmo do nada fosse, sim, todos os ritmos por dentro. Ou então como uma música parada sobre uma montanha em movimento." É assim que as montanhas cantam no novo show de Chico, "Carioca". E um poema-partitura de Villa-Lobos se estende sobre sua sombra móvel, que abre o show cantando "Voltei a Cantar", de Lamartine Babo.
Na tela lê-se "Barros e mais barros. Terra e mar-ina", homenagem de Villa-Lobos a Jayme e Marina de Barros, tios de Hélio Eichbauer, autor do cenário da histórica montagem do Oficina de "O Rei da Vela" e que idealizou o cenário de "Carioca" a partir de um livro de autógrafos de sua família.
E é mesmo no barro e do barro, mistura de mar e de terra, que Chico cria o asfalto de mais uma das cidades que ele gosta de inventar. Ou a cidade imaginada nas telas de cinema, onde passam atrizes que não olham para nós. No fundo, tanto a cidade real como aquela que sonhamos se confundem, e a cidade cantada em "Carioca" é o Rio de Janeiro mas é também de uma geografia estranha, onde montanhas se movem e moças passam leves e desdenhosas. É também nessa cidade que o Cristo dá as costas a Maré, Madureira, Pilares, Inhaúma, e o cenário então gira, dando as costas para nós.
Mulheres que passam, o Cristo que dá as costas, sonhos não realizados e, mesmo assim, de minha pergunta sobre uma incontornável melancolia de suas canções, Chico discorda. Mas creio que minha insistência não seja gratuita. Apesar de dizer, na entrevista, que se "considera cada vez mais músico" e que não acha que a música seja superior às palavras, é reconhecível no novo CD um desejo de encontrar um lugar aquém das palavras, onde elas possam não pesar demais para alguém que as domina tanto.
Quando ele pede à periferia do Rio que desbanque a outra língua, "a tal que abusa de ser tão maravilhosa"; quando ele sonha que um passarinho espanhol pudesse cantar; quando faz o elogio ao rato; quando contempla, perplexo, as musas do cinema ou a estudante de cinema; quando canta a impossibilidade da coincidência dos tempos do amor em "Bolero Blues" e, dessa forma, em todas as outras letras do disco, e quando, principalmente, ele se revela como grande músico, em melodias enviesadas e difíceis, Chico se afirma como um "antimercador de simpatias", como disse na entrevista. Mas também, sinto, como um cantor para quem, à maneira de Drummond, as palavras pesam e o resultado é sim, melancólico.
Viva a melancolia!


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