|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
O homem que dizia não
O princípio da recusa, a força da negatividade está sempre pulsando em cada um de nós
FICO UM pouco irritado quando
ouço, numa dessas exposições
de arte contemporânea, o monitor dizer ao público perplexo: "O
artista quis que cada um interpretasse do seu jeito, há inúmeras interpretações possíveis". É a senha, em
geral, para que não haja interpretação nenhuma.
De resto, qualquer coisa admite as
tais "inúmeras interpretações possíveis": uma pedra, uma gota d'água, a
superfície lisa de uma parede branca
podem perfeitamente se prestar às
"diversas leituras", como se diz, de
quem estiver disposto a tanto.
Não estou defendendo com isso
obras de arte absolutamente claras,
unívocas, como uma placa de rua,
nem aquelas que, como charadas e
adivinhas, admitem uma única interpretação correta. Mas prefiro não
teorizar mais. O fato é que, saindo do
Teatro Aliança Francesa no último
sábado, pilhei-me repetindo o mesmo tipo de frase que condenei no
início deste artigo: "Dá para interpretar de mil maneiras..." E eu tinha
gostado muito de "O Escrivão", peça
baseada numa novela curta de Hermann Melville (1819-1891).
"Bartleby, o Escriturário" (na tradução da Rocco), ou "Bartleby, o Escrivão" (na edição da Cosacnaify) é
um daqueles pequenos livros que
quem lê não sossega enquanto todos
os seus amigos e parentes não tiverem lido também. Num civilizado e
rotineiro escritório de advocacia nova-iorquino, Bartleby é contratado
para fazer cópias de documentos e
conferi-las com dois colegas. É um
tipo magro, melancólico, de olhar
vazio e modos regrados. Acontece
que, com máxima cortesia, recusa-se a cumprir as ordens que lhe dão.
"Prefiro não fazê-lo", diz Bartleby,
e volta ao seu lugar. Durante a peça,
a frase é repetida dezenas de vezes,
sem deixar nunca de obter efeito cômico na platéia. A "resistência passiva" de Bartleby desarma e contamina os demais personagens em cena,
e vai acelerando, num saudável
enlouquecimento, o ritmo do espetáculo. Tudo funciona como uma
curta e cortante comédia, mas a situação é angustiante, claro. A claustrofobia burocrática, o sem-sentido
das tarefas, a repetitiva e insolúvel
alegoria da história fazem de "Bartleby, o Escrivão" um daqueles precursores de Kafka apontados por
Jorge Luis Borges num ensaio famoso. Transposta ao teatro na imaginativa adaptação de Marilia Toledo, é como se o mundo de Kafka se
tornasse o mundo de Ionesco ou
mesmo de Beckett; e aqui começa a
vontade de interpretar, de decifrar o
enigma de Bartleby.
"Quem é Bartleby?" -a frase, em
determinada altura da peça, ganha
humor especial na voz de um dos
seus colegas. A conversão religiosa
de um dos personagens -que não é
das menores loucuras colocadas em
cena, como se fossem as coisas mais
sensatas do mundo- sugere uma
primeira resposta. Não das mais
sensatas, reconheço. Mas a imagem
de alguém que não se move, que não
atende a nenhuma ordem ou pedido
nosso, mantendo-se invariavelmente presente no cenário, parece-se
com a de um Deus que tentamos, em
desespero de causa, inutilmente expulsar do pensamento.
Sem dúvida, a adaptação teatral
fez com que Bartleby pronunciasse,
do fundo de sua imobilidade, palavras de tonalidade metafísica que
não constam do original de Melville:
de vez em quando ele faz declarações sobre o infinito. Mas esse tipo
de interpretação é um pouco como a
que associa o Godot de Beckett a
"God", em inglês, e a "Tod", ("morte", em alemão).
Seja como for, o incrível é que o
próprio chefe hesite em mandar
Bartleby embora ao primeiro sinal
de insubordinação. Despedir o funcionário? "Prefiro não fazê-lo", parece dizer o patrão para si mesmo.
Esse princípio da recusa, essa força
da negatividade está sempre pulsando dentro de cada um de nós; não
deixa de ser fascinante imaginá-la,
como faz Melville, num atarefado
escritório de Wall Street.
É preciso parar, diz Bartleby, e vejo que o número de linhas do meu
artigo já recomenda o mesmo. Queria associar esse princípio da negatividade ao velho e bom Plutão, que,
embora expulso da ordem planetária, recusa-se a obedecer e continua
girando em volta de nós. Queria
também relacionar as recusas de
Bartleby a certos depoimentos nas
CPIs, e com a tentação, que cresce
no eleitorado, de votar nulo... Mas
prefiro não fazê-lo.
De certo modo, não é que o caso de
Bartleby permita "múltiplas interpretações". Como toda boa obra de
arte, não se trata de um enigma, mas
de uma chave -mais uma, e nova -a
nosso dispor para interpretar o
mundo.
coelhofsp@uol.com.br
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Crítica/dança/"Para as Crianças de Ontem, Hoje e Amanhã": Pina Bausch faz dança de luz e trevas Índice
|