São Paulo, quarta-feira, 30 de agosto de 2006

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MARCELO COELHO

O homem que dizia não

O princípio da recusa, a força da negatividade está sempre pulsando em cada um de nós

FICO UM pouco irritado quando ouço, numa dessas exposições de arte contemporânea, o monitor dizer ao público perplexo: "O artista quis que cada um interpretasse do seu jeito, há inúmeras interpretações possíveis". É a senha, em geral, para que não haja interpretação nenhuma.
De resto, qualquer coisa admite as tais "inúmeras interpretações possíveis": uma pedra, uma gota d'água, a superfície lisa de uma parede branca podem perfeitamente se prestar às "diversas leituras", como se diz, de quem estiver disposto a tanto.
Não estou defendendo com isso obras de arte absolutamente claras, unívocas, como uma placa de rua, nem aquelas que, como charadas e adivinhas, admitem uma única interpretação correta. Mas prefiro não teorizar mais. O fato é que, saindo do Teatro Aliança Francesa no último sábado, pilhei-me repetindo o mesmo tipo de frase que condenei no início deste artigo: "Dá para interpretar de mil maneiras..." E eu tinha gostado muito de "O Escrivão", peça baseada numa novela curta de Hermann Melville (1819-1891).
"Bartleby, o Escriturário" (na tradução da Rocco), ou "Bartleby, o Escrivão" (na edição da Cosacnaify) é um daqueles pequenos livros que quem lê não sossega enquanto todos os seus amigos e parentes não tiverem lido também. Num civilizado e rotineiro escritório de advocacia nova-iorquino, Bartleby é contratado para fazer cópias de documentos e conferi-las com dois colegas. É um tipo magro, melancólico, de olhar vazio e modos regrados. Acontece que, com máxima cortesia, recusa-se a cumprir as ordens que lhe dão.
"Prefiro não fazê-lo", diz Bartleby, e volta ao seu lugar. Durante a peça, a frase é repetida dezenas de vezes, sem deixar nunca de obter efeito cômico na platéia. A "resistência passiva" de Bartleby desarma e contamina os demais personagens em cena, e vai acelerando, num saudável enlouquecimento, o ritmo do espetáculo. Tudo funciona como uma curta e cortante comédia, mas a situação é angustiante, claro. A claustrofobia burocrática, o sem-sentido das tarefas, a repetitiva e insolúvel alegoria da história fazem de "Bartleby, o Escrivão" um daqueles precursores de Kafka apontados por Jorge Luis Borges num ensaio famoso. Transposta ao teatro na imaginativa adaptação de Marilia Toledo, é como se o mundo de Kafka se tornasse o mundo de Ionesco ou mesmo de Beckett; e aqui começa a vontade de interpretar, de decifrar o enigma de Bartleby.
"Quem é Bartleby?" -a frase, em determinada altura da peça, ganha humor especial na voz de um dos seus colegas. A conversão religiosa de um dos personagens -que não é das menores loucuras colocadas em cena, como se fossem as coisas mais sensatas do mundo- sugere uma primeira resposta. Não das mais sensatas, reconheço. Mas a imagem de alguém que não se move, que não atende a nenhuma ordem ou pedido nosso, mantendo-se invariavelmente presente no cenário, parece-se com a de um Deus que tentamos, em desespero de causa, inutilmente expulsar do pensamento.
Sem dúvida, a adaptação teatral fez com que Bartleby pronunciasse, do fundo de sua imobilidade, palavras de tonalidade metafísica que não constam do original de Melville: de vez em quando ele faz declarações sobre o infinito. Mas esse tipo de interpretação é um pouco como a que associa o Godot de Beckett a "God", em inglês, e a "Tod", ("morte", em alemão).
Seja como for, o incrível é que o próprio chefe hesite em mandar Bartleby embora ao primeiro sinal de insubordinação. Despedir o funcionário? "Prefiro não fazê-lo", parece dizer o patrão para si mesmo.
Esse princípio da recusa, essa força da negatividade está sempre pulsando dentro de cada um de nós; não deixa de ser fascinante imaginá-la, como faz Melville, num atarefado escritório de Wall Street.
É preciso parar, diz Bartleby, e vejo que o número de linhas do meu artigo já recomenda o mesmo. Queria associar esse princípio da negatividade ao velho e bom Plutão, que, embora expulso da ordem planetária, recusa-se a obedecer e continua girando em volta de nós. Queria também relacionar as recusas de Bartleby a certos depoimentos nas CPIs, e com a tentação, que cresce no eleitorado, de votar nulo... Mas prefiro não fazê-lo.
De certo modo, não é que o caso de Bartleby permita "múltiplas interpretações". Como toda boa obra de arte, não se trata de um enigma, mas de uma chave -mais uma, e nova -a nosso dispor para interpretar o mundo.


coelhofsp@uol.com.br

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