São Paulo, sábado, 30 de agosto de 2008

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Crítica/"Antes do Circo"

Com erudição, Teixeira representa bem a geração pós-68

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Jerônimo Teixeira nasceu no simbólico ano de 1968, o ano que, em termos culturais e políticos, funciona como um verdadeiro divisor de águas: pode-se falar numa geração pós-68, com características muito próprias. Geografia e história ajudam, portanto, a compreender o perfil dessa geração. O Rio Grande do Sul, onde Teixeira nasceu, é terra de leitores (segundo estatísticas recentes trata-se do Estado em que mais se lê no Brasil) e de grandes escritores: Simões Lopes Neto, Érico Veríssimo, Augusto Meyer, Mario Quintana, Dyonelio Machado, Cyro Martins (cujo centenário de nascimento ocorre neste ano). A obra desses autores era marcada pelo regionalismo e também pelo componente ideológico, vários deles estando ligados à esquerda comunista. Mas o grupo de novos e talentosos autores, dos quais Jerônimo Teixeira faz parte, tem um perfil diferente. São pessoas cultas, com um grande conhecimento de literatura (freqüentemente resultante de ligação com a universidade), muitas vezes trabalham na mídia ou em profissões intelectuais. Testemunharam as grandes mudanças ideológicas das últimas décadas, a queda do comunismo, a emergência do fundamentalismo, a valorização do mercado e, compreensivelmente, são céticos em relação à política, principalmente a política partidária do país. Neste sentido, a coletânea de contos que Jerônimo Teixeira acaba de lançar, "Antes do Circo" (que se segue à novela "As Horas Podres"), é absolutamente paradigmática, como o é a trajetória do próprio autor. Teixeira cursou letras, é mestre em teoria literária pela PUC-RS e jornalista: trabalha na revista "Veja", justamente na seção de livros. Todas as características de geração estão presentes nas 11 histórias que compõem o livro. Para começar, sua impressionante erudição está presente nas epígrafes, tiradas de textos de W. B. Yeats, Jorge Luis Borges, James Joyce, Joseph Conrad (mas também dos contemporâneos gaúchos Victor Ramil e Eduardo Sterzi), bem como nos próprios títulos: uma das histórias chama-se "Unheimlich", termo que Freud popularizou e que significa estranho e familiar a um tempo ("sinistro", prefere Sergio Paulo Rouanet). Outro título é "Gigolo Ivre", uma alusão ao "Bateau Ivre" de Rimbaud. Ou seja: Teixeira escreve sobretudo para leitores familiarizados com essas referências. De outra parte, porém, os contos, cujo cenário freqüentemente é Porto Alegre, têm muito a ver com as agruras e os ciúmes da vida literária, com o clima de cinismo e violência de nossa sociedade e com a desilusão ideológica ("Melancólica Morte de um Comunista" é, neste sentido, exemplar). Por último, mas não menos importante, Jerônimo Teixeira é um ótimo narrador. Tem um grande domínio da forma literária, seus diálogos são vívidos, inclusive quando envolvem personagens da marginália. Estas qualidades fazem de seu trabalho uma bela revelação literária. Vale a pena ler esses livros e acompanhar uma trajetória literária indiscutivelmente promissora.

ANTES DO CIRCO
Autor: Jerônimo Teixeira
Editora: Record
Quanto: R$ 28 (128 págs.)
Avaliação: bom

TRECHO

A covardia perde tudo o que escrevo. Para cada palavra há sempre uma palavra outra, uma palavra maior, mas não ouso, não posso. Por essa razão nunca escrevi a história que Ricardo Lise nos contou, de madrugada, em algum grotão escuro no interior do Paraná, suponho, e à meia-voz para não despertar os outros passageiros. Sempre soube que, se a registrasse, seria apenas isso: um registro, papel amarelado e atulhado em uma pasta ou gaveta. Ou menos que papel, um arquivo eletrônico, História de horror.doc, esquecido no computador junto com uma penca de outros contos ordinários [...].

Extraído do conto "Unheimlich", do livro "Antes do Circo", de Jerônimo Teixeira



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