São Paulo, sábado, 30 de agosto de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

As nuvens no chão


Meireles concilia a vocação pública e a discreta presença do mundo urbano

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

NA DEFINIÇÃO do desafio que move a pintura metafísica do mestre italiano De Chirico -"encontrar o enigma e sua legibilidade"-, Cecília Meireles (1901-1964) apanhou também o desafio crítico que ela mesma continua a impor à historiografia literária brasileira. Não se trata apenas da altiva singularidade que a destaca no caudal modernista, poeta de uma lírica mais "pura" e mais clássica na forma, mas de compreender como esta voz etérea, aparentemente fora da história, também expressa um sentimento do seu tempo.
Em "Pensamento e "Lirismo Puro" na Poesia de Cecília Meireles", Leila Gouvêa enfrenta e desdobra o problema crítico numa perspectiva que casa amplitude, cobrindo dos primeiros livros a "Solombra", com minúcia analítica.
O ensaio se debruça sobre a difícil conciliação entre a vocação pública da poeta carioca e a discreta presença do mundo urbano e do trabalho em sua poesia, onde uma simplicidade elemental, feita de nuvens, música e cromatismo, parece apagar os vestígios do real, transfigurado, no mito e na forma bela.
Se Meireles sintetizou influências diversas (o interesse pela filosofia oriental, o conhecimento entranhado da lírica portuguesa e do barroco ibérico, do simbolismo e pós-simbolismo internacional) numa "linguagem alegorizante de substrato platônico", partilhando a vertente órfica e hermética do modernismo internacional, o esforço de Gouvêa está em demonstrar como a este lirismo puro vem se sobrepor, na obra final, uma visão ceciliana trágica da história, evidente, por exemplo, no "Romanceiro da Inconfidência", de 1953.
O quadro que se abre é, ao mesmo tempo, complexo e estimulante. Tem o mérito de evidenciar marcas ocultas da experiência no que a muitos pareceu ser um exercício de expressão mística, deliberadamente atemporal e sem limites espaciais definidos e, como a poesia é coisa verbal, de especificar diálogos de Cecília Meireles com uma infinidade de matrizes, quase sempre intuídas, mas raramente investigadas a fundo.

PENSAMENTO E "LIRISMO PURO" NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES
Autor: Leila V. B. Gouvêa
Editora: Edusp
Quanto: R$ 38 (248 págs.)
Avaliação: bom



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