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CONTARDO CALLIGARIS
Leituras narcisistas
As seções de revistas e jornais
que se dedicam a descrever nossa
vida cotidiana crescem de tamanho e importância. Nosso comportamento, nossas aspirações,
nossas escolhas amorosas e sexuais, os estilos do dia e da noite,
tudo isso desloca as notícias e chega a ser reportagem de capa.
Na banca da esquina, gostamos
de encontrar uma pesquisa para
saber se usamos ou não preservativo, o que pensamos do sadomasoquista, o que fazemos de nosso
lazer, se trabalhamos, se somos
fiéis, como tratamos filhos e filhas, o que esperamos do futuro, e
por aí vai. São capas que inspiram uma curiosidade especial e
motivam a compra. Ah! Isso sim
nós queremos ler.
É estranho, pois estas reportagens e pesquisas nos retratam fielmente. É raro então que elas
constituam uma surpresa. Afinal,
se a maioria dos brasileiros usa
camisinha menos do que deveria,
é presumível que a maioria dos
leitores já saiba disso a partir de
seu próprio comportamento
amoroso e sexual.
A leitura, em suma, não oferece
as jóias da descoberta. É muito
mais uma espécie de prazer narcisista: nessas reportagens, nos contemplamos à vontade, como num
espelho. Exultamos, reconhecendo nossa imagem, assim como
exulta uma criança que pela primeira vez se dá conta de que a figura no espelho é ela mesma. É isso, é isso, é assim que somos!
Olhar-se no espelho é desde
sempre uma atividade um pouco
vergonhosa e culpada. Quem se
olha e gosta de se ver, ou seja,
quem fica feliz com sua própria
cara merece cair no lago com
Narciso e ser transformado em
flor. Em vez de se admirar, poderia e deveria olhar e amar os outros e naturalmente a Deus. Mas
esse narcisismo pecaminoso, esse
auto-apaixonamento é hoje sobretudo um mito.
Conseguimos gostar de nós
mesmos só na medida em que
acreditamos que os outros gostem
da gente. E esse terreno é minado,
sem garantia: mesmo nossas
mães, que nos amaram (se supõe)
cegamente, em algum momento
devem ter nos achado chatos.
Aposto que mesmo a bruxa de
Branca de Neve (que de qualquer
forma não estava nada encantada consigo mesma, mas dramaticamente preocupada com a concorrência) hoje se limitaria a perguntar se o espelho a acha passável ou não.
Olhar no espelho pode, segundo
o humor do dia, nos consolar ou
deprimir. Mas, atrás dessas variáveis, o único reflexo sempre garantido é a imagem de nossa insegurança. No espelho, longe de
adorar estaticamente nossa cara,
tentamos compor ativamente
uma imagem que seja amável.
Por isso o espelho, que já foi metáfora de imobilismo (me olho,
me gosto, não mexo), se tornou
um objeto dinâmico. Experimentamos atitudes, maquiagem, aparências, gestos para cativar uma
platéia da qual esperamos o veredicto: somos ou não somos (gostosos)? Abreviado: somos ou não somos?
No passado, aceitava-se que essa fosse a relação das mulheres
com o espelho. Durante séculos de
status social subalterno, as mulheres deviam tudo ao homem
que elas saberiam ou não seduzir.
Elas eram portanto condenadas a
serem gostadas ou sumirem do
mapa (perdão, do espelho). A dita
vaidade feminina era uma necessidade social. A mesma vaidade
do lado do homem seria debilidade sem justificação: afinal, um
homem para ser alguém não precisava depender de nenhuma sedução. Melhor seria que confiasse
em sua probidade ou força (eventualmente de caráter).
Hoje os homens ficam facilmente plantados em frente do espelho
(nas academias do mundo -verdadeiras e metafóricas), extasiados perante seus bíceps flexionados. Em geral, eles tentam convencer a platéia de que estão se
regozijando na tranquila contemplação de sua própria virilidade. As mulheres sabem por experiência que esse novo interesse
deles para o espelho é filho da
mesma insegurança da qual elas
sofreram.
Todos, homens e mulheres, somos hoje suspensos à aprovação
dos outros. Somos todos reféns do
olhar dos outros. É esse o quadro
social em que vive a personalidade narcisista: cronicamente insegura (será que me amam?) e aparentemente vazia (farei e serei o
que preciso para ser amado).
Essa figura fraca e complacente
é o ícone de nossa época, fonte de
nossos cinismos e de nossas inconsistências.
Essa mesma figura é também filha da liberdade: somos inseguros
e vazios porque abandonamos as
definições intrínsecas de nós mesmos, de nossa posição ou função
social.
Com isso, ficamos sedentos de
qualquer coisa que nos defina,
nos assegurando que não somos
invisíveis. Sedentos, por exemplo,
das reportagens de "cotidiano",
"sociedade" ou "comportamento", nas quais verificamos que
nossa imagem existe e consiste,
pois ela está hoje na capa da revista e é compartilhada por muitos. Somos um ou uma dos brasileiros dos quais se trata, reconhecíveis, por exemplo, por usar camisinha menos do que precisa.
Devemos viver tempos verdadeiramente comunitários. Precisamos que outros nos prezem para considerar com benevolência
nossa própria cara e nos encontramos definidos, confirmados e
felizes nas descrições estatísticas
de comportamento e costumes.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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