São Paulo, Quinta-feira, 30 de Setembro de 1999
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CONTARDO CALLIGARIS

Leituras narcisistas

As seções de revistas e jornais que se dedicam a descrever nossa vida cotidiana crescem de tamanho e importância. Nosso comportamento, nossas aspirações, nossas escolhas amorosas e sexuais, os estilos do dia e da noite, tudo isso desloca as notícias e chega a ser reportagem de capa.
Na banca da esquina, gostamos de encontrar uma pesquisa para saber se usamos ou não preservativo, o que pensamos do sadomasoquista, o que fazemos de nosso lazer, se trabalhamos, se somos fiéis, como tratamos filhos e filhas, o que esperamos do futuro, e por aí vai. São capas que inspiram uma curiosidade especial e motivam a compra. Ah! Isso sim nós queremos ler.
É estranho, pois estas reportagens e pesquisas nos retratam fielmente. É raro então que elas constituam uma surpresa. Afinal, se a maioria dos brasileiros usa camisinha menos do que deveria, é presumível que a maioria dos leitores já saiba disso a partir de seu próprio comportamento amoroso e sexual.
A leitura, em suma, não oferece as jóias da descoberta. É muito mais uma espécie de prazer narcisista: nessas reportagens, nos contemplamos à vontade, como num espelho. Exultamos, reconhecendo nossa imagem, assim como exulta uma criança que pela primeira vez se dá conta de que a figura no espelho é ela mesma. É isso, é isso, é assim que somos!
Olhar-se no espelho é desde sempre uma atividade um pouco vergonhosa e culpada. Quem se olha e gosta de se ver, ou seja, quem fica feliz com sua própria cara merece cair no lago com Narciso e ser transformado em flor. Em vez de se admirar, poderia e deveria olhar e amar os outros e naturalmente a Deus. Mas esse narcisismo pecaminoso, esse auto-apaixonamento é hoje sobretudo um mito.
Conseguimos gostar de nós mesmos só na medida em que acreditamos que os outros gostem da gente. E esse terreno é minado, sem garantia: mesmo nossas mães, que nos amaram (se supõe) cegamente, em algum momento devem ter nos achado chatos.
Aposto que mesmo a bruxa de Branca de Neve (que de qualquer forma não estava nada encantada consigo mesma, mas dramaticamente preocupada com a concorrência) hoje se limitaria a perguntar se o espelho a acha passável ou não.
Olhar no espelho pode, segundo o humor do dia, nos consolar ou deprimir. Mas, atrás dessas variáveis, o único reflexo sempre garantido é a imagem de nossa insegurança. No espelho, longe de adorar estaticamente nossa cara, tentamos compor ativamente uma imagem que seja amável.
Por isso o espelho, que já foi metáfora de imobilismo (me olho, me gosto, não mexo), se tornou um objeto dinâmico. Experimentamos atitudes, maquiagem, aparências, gestos para cativar uma platéia da qual esperamos o veredicto: somos ou não somos (gostosos)? Abreviado: somos ou não somos?
No passado, aceitava-se que essa fosse a relação das mulheres com o espelho. Durante séculos de status social subalterno, as mulheres deviam tudo ao homem que elas saberiam ou não seduzir. Elas eram portanto condenadas a serem gostadas ou sumirem do mapa (perdão, do espelho). A dita vaidade feminina era uma necessidade social. A mesma vaidade do lado do homem seria debilidade sem justificação: afinal, um homem para ser alguém não precisava depender de nenhuma sedução. Melhor seria que confiasse em sua probidade ou força (eventualmente de caráter).
Hoje os homens ficam facilmente plantados em frente do espelho (nas academias do mundo -verdadeiras e metafóricas), extasiados perante seus bíceps flexionados. Em geral, eles tentam convencer a platéia de que estão se regozijando na tranquila contemplação de sua própria virilidade. As mulheres sabem por experiência que esse novo interesse deles para o espelho é filho da mesma insegurança da qual elas sofreram.
Todos, homens e mulheres, somos hoje suspensos à aprovação dos outros. Somos todos reféns do olhar dos outros. É esse o quadro social em que vive a personalidade narcisista: cronicamente insegura (será que me amam?) e aparentemente vazia (farei e serei o que preciso para ser amado).
Essa figura fraca e complacente é o ícone de nossa época, fonte de nossos cinismos e de nossas inconsistências.
Essa mesma figura é também filha da liberdade: somos inseguros e vazios porque abandonamos as definições intrínsecas de nós mesmos, de nossa posição ou função social.
Com isso, ficamos sedentos de qualquer coisa que nos defina, nos assegurando que não somos invisíveis. Sedentos, por exemplo, das reportagens de "cotidiano", "sociedade" ou "comportamento", nas quais verificamos que nossa imagem existe e consiste, pois ela está hoje na capa da revista e é compartilhada por muitos. Somos um ou uma dos brasileiros dos quais se trata, reconhecíveis, por exemplo, por usar camisinha menos do que precisa.
Devemos viver tempos verdadeiramente comunitários. Precisamos que outros nos prezem para considerar com benevolência nossa própria cara e nos encontramos definidos, confirmados e felizes nas descrições estatísticas de comportamento e costumes.


E-mail: ccalligari@uol.com.br



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